foto: Rosa Monteiro |
Helena
/ O Portugal futuro de Ruy Belo
O
portugal futuro é um país
Aonde o
puro pássaro é possível
e sobre
o leito negro do asfalto da estrada
as
profundas crianças desenharão a giz
esse
peixe da infância que vem na enxurrada,
e me
parece que se chama sável
Mas
desenhem elas o que desenharem
é essa
a forma do meu país
e chamem
elas o que lhe chamarem
portugal
será e lá serei feliz
Poderá
ser pequeno como este
ter a
oeste o mar e a espanha a leste
tudo
nele será novo desde os ramos à raiz
À
sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na
avenida que houver à beira-mar
pode o
tempo mudar será verão
Gostaria
de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso
era o passado e podia ser duro
edificar
sobre ele o portugal futuro
António
Soares / de Mário Cesariny
no pais
no país no país onde os homens
são só
até ao joelho
e o
joelho que bom é só até à ilharga
conto os
meus dias tangerinas brancas
e vejo a
noite Cadillac obsceno
a rondar
os meus dias tangerinas brancas
para um
passeio na estrada Cadillac obsceno
e no
país no país e no país país
onde as
lindas raparigas são só até ao pescoço
e o
pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo
que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a
atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo
os meus amores liames indestrutíveis
e vejo
uma panóplia cidadã do mundo
a dormir
nos meus braços liames indestrutíveis
para que
eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande
história do amor só até ao pescoço
e no
país no país que engraçado no país
onde o
poeta o poeta é só até à plume
e a
plume que bom é só até ao fantasma
ao passo
que o fantasma - ora aí está -
não é
outro senão a divina criança (prometida)
uso os
meus olhos grandes bons e abertos
E vejo a
noite (on ne passe pas)
diz que
grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem
por motivo de obras.
É
relativamente queda de água
e já
agora há muito não é doutra maneira
no país
onde os homens são só até ao joelho
e o
joelho que bom está tão barato
João
/ Inventário de Miguel Torga
E,
apesar de tudo, sou ainda o Homem!
Um
bípede com fala e sentimentos.
Ao cabo
de misérias e tormentos,
Continua
A ser a
minha imagem que flutua
Na
podridão dos charcos luarentos.
Sou eu
ainda a grande maravilha
Que se
mostra no mundo.
O negro
abismo que tem lá no fundo
Um
regato a correr:
Uma
risca de céu e de frescura
Que
murmura
A ver se
alguma boca a quer beber.
Quanto o
grave silêncio da paisagem
Me
renega e protesta,
Pouco
importa na festa
Deste
encontro feliz;
Obra de
Arcanjo ou de Satanás,
Eu é
que fui capaz
De fazer
o que fiz!
Podia
ser melhor o meu destino:
Ter o
sol mais aberto em cada mão...
Mas,
Adão,
Dei o
que a argila deu.
E, corpo
e alma da degradação,
O
milagre é que o Homem não morreu!
Não!
Não me queiram na cova que não tenho,
Porque
eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu
que canto ainda e que palpito
No meu
canto!
Sou eu
que na pureza do meu grito
Me
levanto!
António
Gil / Vampiros de Zeca Afonso
No céu
cinzento
Sob o
astro mudo
Batendo
as asas
Pela
noite calada
Vêm em
bandos
Com pés
de veludo
Chupar o
sangue
Fresco
da manada
Se
alguém se engana
Com seu
ar sisudo
E lhes
franqueia
As
portas à chegada
Eles
comem tudo
Eles
comem tudo
Eles
comem tudo
E não
deixam nada
A toda a
parte
Chegam
os vampiros
Poisam
nos prédios
Poisam
nas calçadas
Trazem
no ventre
Despojos
antigos
Mas nada
os prende
Às
vidas acabadas
São os
mordomos
Do
universo todo
Senhores
à força
Mandadores
sem lei
Enchem
as tulhas
Bebem
vinho novo
Dançam
a ronda
No
pinhal do rei
Eles
comem tudo
E não
deixam nada
No chão
do medo
tombam
os vencidos
Ouvem-se
os gritos
na noite
abafada
Jazem
nos fossos
Vítimas
dum credo
E não
se esgota
O sangue
da manada
Se
alguém se engana
Com seu
ar sisudo
E lhes
franqueia
As
portas à chegada
Eles
comem tudo
E não
deixam nada
Mariana
/ Trovas do mês de Abril de Manuel Alegre
Foram
dias foram anos a esperar por um só dia.
Alegrias.
Desenganos. Foi o tempo que doía
Com seus
riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia
Na
esperança de um só dia.
Foram
batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.
Foi a
vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)
Mil
encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)
Por um
só dia vivida.
Foi o
tempo que passava como nunca se passasse.
E uma
flauta que cantava como se a noite rasgasse
Toda a
vida e uma palavra: liberdade que vivia
Na
esperança de um só dia.
Musa
minha vem dizer o que nunca então disse
Esse
morrer de viver por um dia em que se visse
um só
dia e então morrer. Musa minha que tecias
um só
dia dos teus dias.
Vem
dizer o puro exemplo dos que nunca se cansaram
musa
minha onde contemplo os dias que se passaram
sem
nunca passar o tempo. Nesse tempo em que daria
a vida
por um só dia.
Já
muitas águas correram já muitos rios secaram
batalhas
que se perderam batalhas que se ganharam.
Só os
dias morreram em que era tão curta a vida
Por um
só dia vivida.
E as
quatros estações rolaram com seus ritmos e seus ritos.
Ventos
do Norte levaram festas jogos brincos ditos.
E as
chamas não se apagaram. Que na ideia a lenha ardia
Toda a
vida por um dia.
Fogos-fátuos
cinza fria. Musa minha que cantavas
A canção
que se vestia com bandeiras nas palavras:
Armas
que o tempo tecia. Minha vida toda a vida
Por um
só dia vivida.
Ana
Maria / Somos livres de Ermelinda Duarte
Ontem
apenas
fomos a
voz sufocada
dum povo
a dizer não quero;
fomos os
bobos-do-rei
mastigando
desespero.
Ontem
apenas
fomos o
povo a chorar
na
sarjeta dos que, à força,
ultrajaram
e venderam
esta
terra, hoje nossa.
Uma
gaivota voava, voava,
asas de
vento,
coração
de mar.
Como
ela, somos livres,
somos
livres de voar.
Uma
papoila crescia, crescia,
grito
vermelho
num
campo qualquer.
Como ela
somos livres,
somos
livres de crescer.
Uma
criança dizia, dizia
"quando
for grande
não vou
combater".
Como
ela, somos livres,
somos
livres de dizer.
Somos um
povo que cerra fileiras,
parte à
conquista
do pão
e da paz.
Somos
livres, somos livres,
não
voltaremos atrás.
Fernando
/ de Jorge de Sena
Nunca
pensei viver para ver isto:
a
liberdade - (e as promessas de liberdade)
restauradas.
Não, na verdade, eu não pensava
- no
negro desespero sem esperança viva -
que isto
acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora,
meu general?
Tantos
morreram de opressão ou de amargura,
tantos
se exilaram ou foram exilados,
tantos
viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos
se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos
desaprenderam que a liberdade existe -
E agora,
povo português?
Essas
promessas - há que fazer depressa
que o
povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que
nelas, porque elas só nele se realizam
e por
ele. Há que, por todos os meios,
abrir as
portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos -
E agora,
meu general?
E tu
povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á
a tua voz firme por sobre os clamores
com que
saúdas as promessas de liberdade?
Tomarás
nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo
que, numa hora única, te prometeram?
E agora,
povo português?
Cristina
/ de José Gomes Ferreira
E foi
para esta farsa
que se
fez a revolução de Abril, capitães,
ao som
das canções de Lopes-Graça?
Foi para
voltar à fúria dos cães,
ao suor
triste das ceifeiras nas searas,
as
espingardas que matam os filhos as mães
num
arder de lágrimas na cara?
E, no
entanto,
no
princípio, todos ouvíamos uma Voz
a
dizer-nos que a nossa terra poderia tornar-se num pomar
de
misteriosos pomos.
E nós,
todos
nós, chegámos a pensar
que
éramos maiores do que somos.
Mila
/ Aos homens do cais de Ruy Belo
Plantados
como árvores no chão
ao alto
ergueis os vossos troncos nus
e o
fruto que produz a vossa mão
vem do
trabalho e transparece à luz
Nenhum
passado vale o dia-a-dia
Sonho só
o que vós me consentis
Verdade
a que de vós só irradia
-
Portugal não é pátria mas país
Sem comentários:
Enviar um comentário