ANTÓNIO TORRADO - O CONTADOR ...
O contador
antes de começar
fez um gesto no ar
em redondo
como se quisesse desenhar
o Sol
a casca de um caracol
um balão
a sombra de um pião
um bombo...
E disse:
- A história que vou contar
começa por uma ponta
dá uma volta reviravolta
meia tonta
e acaba
tal e qual
mesmo ao lado
donde tudo tinha começado.
Por isso,
para a cambalhota final
da história em salto mortal
onde ninguém corre perigo,
contem
contem comigo.
E o contador, contente
por contar,
ficou-se a olhar
para toda aquela gente
à roda da história
e dele,
contador
desenhador no ar
inventor da arte de saltar
sem se mexer.
Ficou-se a olhar, a olhar
e suspirou de prazer
a ponto de se esquecer
de continuar.
- Mas onde é que eu ia? -
- perguntou o contador,
um pouco perdido
no meio do contentamento
do contar e ouvir contar,
que é assim a modos que
uma espécie de cócega,
virada do avesso,
uma sede, um sabor
um sabor a pêssego
antes do pêssego chegar ao calor
do céu-da-boca...
- Ah! - lembrou-se o contador
que, às vezes, se distraía
dos recados que trazia.
E com um lento aceno
de quem muda a folha
dum livro ou do pensamento,
o contador concluiu:
- A história que vou contar
é, nem mais nem menos,
do que uma história circular
como vão já já já
poder observar
Ora façam favor de reparar...
Patrícia
MANOEL DE BARROS - O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos
Ana Rita
MANUEL ANTÓNIO PINA - COISAS QUE NÃO HÁ QUE HÁ
Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...
Virgínia
ITALO CALVINO - SE NUMA NOITE DE INVERNO UM VIAJANTE
"Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista visual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Para Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha de baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos diante das torres de reduto, onde se te opõem resistência
os Livros Que Há Muito Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Te Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pores Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina, Frenética E Não Claramente Justificada.
E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Que Leste e Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo."
Mariana
JOSÉ PAULO PAES - PESCARIA
Um homem
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a ideia
de usar as minhocas numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
que se preocupava demais
com coisas sem importância
acabou ficando com a cabeça cheia de minhocas.
Um amigo lhe deu então a ideia
de usar as minhocas numa pescaria
para se distrair das preocupações.
O homem se distraiu tanto
pescando
que sua cabeça ficou leve
como um balão
e foi subindo pelo ar
até sumir nas nuvens.
Fernando
RUSSELL EDSON - UM PEQUENO ALMOÇO HISTÓRICO
Um homem aproxima uma chávena de café da cara, inclina-a para a boca. É histórico, pensa. Ele coça a cabeça: outro acontecimento histórico. Devia era descansar, está a produzir uma quantidade imensa de história logo de manhã.
Credo, agora está a barrar torradas com manteiga, outro bocado de história a fazer-se.
Ele espanta-se por ter-lhe sido destinado ser tão histórico. Outros provavelmente não o têm, pensa, é, ao fim e ao cabo, um talento.
Ele pensa que um dos seus atacadores precisa de ser apertado. Ah bom, mais um acontecimento histórico importante que está para acontecer. Não o pode evitar. Estará talvez a ocupar uma faixa demasiado grande de história? Mas tem que viver, não tem? As torradas necessitam de manteiga e ele não pode andar por aí com um dos atacadores desapertados, pois não?
É certamente verdade, que quando escreverem todo o século XX será principalmente acerca dele. É a forma como o bolo se esmigalha - ah, aí está uma frase que será citada nos séculos vindouros.
Convencido? Um pouco; como pode evitá-lo observado por todos os olhos ainda por nascer do futuro?
Oh, oh, sente outro acontecimento histórico a chegar... Ah, ai está, uma chávena de café a aproximar-se da cara na ponta do seu braço. Se conseguissem registar isso em filme, quanta importância não teria para o futuro.
Bolas, derramou-o todo no colo. Um desses acidentes históricos que influenciarão os próximos mil anos; imprevisível e até muito desconfortável... Mas a história nunca é fácil, pensa ele...
Credo, agora está a barrar torradas com manteiga, outro bocado de história a fazer-se.
Ele espanta-se por ter-lhe sido destinado ser tão histórico. Outros provavelmente não o têm, pensa, é, ao fim e ao cabo, um talento.
Ele pensa que um dos seus atacadores precisa de ser apertado. Ah bom, mais um acontecimento histórico importante que está para acontecer. Não o pode evitar. Estará talvez a ocupar uma faixa demasiado grande de história? Mas tem que viver, não tem? As torradas necessitam de manteiga e ele não pode andar por aí com um dos atacadores desapertados, pois não?
É certamente verdade, que quando escreverem todo o século XX será principalmente acerca dele. É a forma como o bolo se esmigalha - ah, aí está uma frase que será citada nos séculos vindouros.
Convencido? Um pouco; como pode evitá-lo observado por todos os olhos ainda por nascer do futuro?
Oh, oh, sente outro acontecimento histórico a chegar... Ah, ai está, uma chávena de café a aproximar-se da cara na ponta do seu braço. Se conseguissem registar isso em filme, quanta importância não teria para o futuro.
Bolas, derramou-o todo no colo. Um desses acidentes históricos que influenciarão os próximos mil anos; imprevisível e até muito desconfortável... Mas a história nunca é fácil, pensa ele...
Teresa Ramos
SÉRGIO GODINHO - O OVO
A galinha pôs um ovo
até aqui nada de novo
mas atenção
por estranho que pareça
não pôs o ovo no chão
pôs o ovo na cabeça
fê-lo tão violentamente
que o ovo deu um estalo
e mais que evidentemente
na cabeça da galinha
nasceu um galo
A galinha pôs um ovo
até aqui nada de novo
mas atenção
por estranho que pareça
não pôs o ovo no chão
pôs o ovo na cabeça
fê-lo tão violentamente
que o ovo deu um estalo
e mais que evidentemente
na cabeça da galinha
nasceu um galo
Helena Ramos
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN - MÓNICA
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve de renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, "qualquer distracção pode causar a morte do artista". Mónica nunca tem uma distracção.
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve de renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, "qualquer distracção pode causar a morte do artista". Mónica nunca tem uma distracção.
Isabel e João
ANTÓNIO GEDEÃO - IMPRESSÃO DIGITAL
Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!
Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!
Teresa Pedrosa
FERNANDO PESSOA - NÃO SEI SE É SONHO
Não sei se é sonho, se realidade
Se uma mistura de sonho e de vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Não sei se é sonho, se realidade
Se uma mistura de sonho e de vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É a que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.
Talvez palmares inexistentes,
Áleas longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.
Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar.
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.
Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Helena Policarpo
EUGÉNIO DE ANDRADE - ELEGIA E DESTRUIÇÃO
Desse tempo em que se permanece criança
durante milhares de anos,
trouxe comigo um cheiro a resina;
trouxe também os juncos vermelhos
que ladeiam a orla do silêncio,
neste quarto, agora habitado pelo vento;
trouxe ainda um olhar húmido
onde os pássaros perpetuam o céu.
Dificilmente esqueço a rua onde encontrei
os teus olhos imensos, fascinados
pelo fulgor secreto das espadas,
a casa onde te contei, de mãos trémulas,
a parábola do pão e do vinho,
dando a cada palavra um rosto novo.
A cidade onde te amei foi decepada
e não posso abolir as sentinelas do medo.
Mas também não posso deixar de te querer
com beijos e relâmpagos,
com sonhos que tropeçam nas paredes
e se alimentam de terror e alegria,
enquanto o tempo persiste em soluçar.
Que me quereis verdes sombras da lua
na minha cama onde adormece o frio?
Aqui estou, mais alto do que o trigo,
sangrando nas pétalas do dia,
e sem receio de que aos nossos gritos
ainda chamem brisa.
Desse tempo em que se permanece criança
durante milhares de anos,
trouxe comigo um cheiro a resina;
trouxe também os juncos vermelhos
que ladeiam a orla do silêncio,
neste quarto, agora habitado pelo vento;
trouxe ainda um olhar húmido
onde os pássaros perpetuam o céu.
Dificilmente esqueço a rua onde encontrei
os teus olhos imensos, fascinados
pelo fulgor secreto das espadas,
a casa onde te contei, de mãos trémulas,
a parábola do pão e do vinho,
dando a cada palavra um rosto novo.
A cidade onde te amei foi decepada
e não posso abolir as sentinelas do medo.
Mas também não posso deixar de te querer
com beijos e relâmpagos,
com sonhos que tropeçam nas paredes
e se alimentam de terror e alegria,
enquanto o tempo persiste em soluçar.
Que me quereis verdes sombras da lua
na minha cama onde adormece o frio?
Aqui estou, mais alto do que o trigo,
sangrando nas pétalas do dia,
e sem receio de que aos nossos gritos
ainda chamem brisa.
António
PARAÍSO - DAVID MOURÃO-FERREIRA
Deixa ficar comigo a madrugada,
Para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
Deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
Onde eu ouça o estertor de uma gaivota…
Crepite, em derredor, o mar de Agosto…
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
Que acendas, para tudo ser perfeito,
À cabeceira a luz do teu joelho,
Entre os lençois o lume do teu peito…
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
Para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
Deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto,
Onde eu ouça o estertor de uma gaivota…
Crepite, em derredor, o mar de Agosto…
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho
Que acendas, para tudo ser perfeito,
À cabeceira a luz do teu joelho,
Entre os lençois o lume do teu peito…
Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.
Daniel
TOSSAN - O SAPO
Um sapo de grande papo
Papou a papa do prato
Que era para o papo do gato.
E não só papou a papa
Como também papou o prato.
O prato quando chegou ao papo
Encontrou-se com a papa
Que já lá estava no papo.
E o sapo, da papa fez a digestão
Agora do prato é que não.
Um sapo de grande papo
Papou a papa do prato
Que era para o papo do gato.
E não só papou a papa
Como também papou o prato.
O prato quando chegou ao papo
Encontrou-se com a papa
Que já lá estava no papo.
E o sapo, da papa fez a digestão
Agora do prato é que não.
Alexandra Justino
ALEXANDRE O’NEILL - AMIGO
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandra Ferreira
ALMADA NEGREIROS - VALOR DAS PALAVRAS
Há palavras que fazem bater mais depressa o coração – todas as palavras – umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem – do lado do sol ou do lado onde não dá o sol. Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o universo. As palavras querem estar nos seus lugares!
Há palavras que fazem bater mais depressa o coração – todas as palavras – umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem – do lado do sol ou do lado onde não dá o sol. Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o universo. As palavras querem estar nos seus lugares!
Cecília
SEBASTIÃO DA GAMA - CABO DA BOA ESPERANÇA
Nasci pra ser ignorante.
Mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.
Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.
Perdi o nome às Estrelas,
aos nosso rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.
Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.
Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.
Mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.
Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.
Perdi o nome às Estrelas,
aos nosso rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.
Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.
Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.
Conheço mais de mil flores.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.
No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.
O pior é se um director
espreita pla fechadura:
lá se vai a licenciatura
se ouve as lições do doutor.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.
No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.
O pior é se um director
espreita pla fechadura:
lá se vai a licenciatura
se ouve as lições do doutor.
Lá se vai o ordenado
de tuta e meia por mês,
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.
Se me não lograr o fado,
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,
enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.
de tuta e meia por mês,
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.
Se me não lograr o fado,
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,
enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.
Augusto
LEÓN FELIPE - EU NÃO SEI MUITAS COISAS...
Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
que o berço do homem o embalam com histórias,
que os gritos de angústia do homem os afogam com histórias,
que o pranto do homem o tapam com histórias,
que os ossos do homem os enterram com histórias,
e que o medo do homem…
inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias…
E sei todas as histórias.
Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Apenas falo do que tenho visto.
E já vi:
que o berço do homem o embalam com histórias,
que os gritos de angústia do homem os afogam com histórias,
que o pranto do homem o tapam com histórias,
que os ossos do homem os enterram com histórias,
e que o medo do homem…
inventou todas as histórias.
Sei muito poucas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as histórias…
E sei todas as histórias.
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