a Ana Rita trará o livro do dia
Os objectivos continuam a ser os mesmos; promover o prazer da leitura partilhada; a forma passou a ser outra.
namoros livrescos
e eis que começaram a surgir os primeiros namoros
A Teresa Pedrosa trouxe " O homem que lia romances de amor" de Luis Sepúlveda para a Alexandra Justino
(como a Alexandra não veio ontem, ainda não sabemos se o pedido será aceite)
A Helena Policarpo enamorou-se do livro "Histórias da terra e do mar" da Sophia de Mello Breyner Andresen, trazido pela Mila e saiu muito contente levando-o pelo braço.
A Ana Rita foi mais descarada e dedicou o seu "Pescador" à Virgínia que de bom grado aceitou.
A Cristina namorou por interposta pessoa e enviou o " Casos do Beco das Sardinheiras" de Mário de Carvalho para o Rodrigo. Veremos se o Rodrigo se enamora...
A Cristina namorou por interposta pessoa e enviou o " Casos do Beco das Sardinheiras" de Mário de Carvalho para o Rodrigo. Veremos se o Rodrigo se enamora...
Etiquetas:
CLeVA 1.0,
namoros livrescos
21 outubro 2010 - Mar
Leituras:
Mila
Excerto do conto "A casa do mar" de Sophia de Mello Breyner Andresen do livro "Histórias da terra e do mar"
Mariana
Da "Mensagem" de Fernando Pessoa,
Mar Portuguez
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Helena Policarpo, Isabel, João, Ana Rita, Cecília |
Teresa Pedrosa
Excerto de "O velho e o mar" de Ernest Hemingway
Helena Ramos, Teresa Pedrosa |
Helena Ramos
Estrela do mar de Jorge Palma
a Isabel
leu-nos poema feito "a meias" com a sua irmã
também a Ana Rita
nos leu um poema da sua autoria; "Pescador"
Virgínia (para levantar a moral)
Da "Mensagem" de Fernando Pessoa,
O Infante
Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagroute, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
e ainda:
de Fernanda de Castro, com uma belíssima introdução de David Mourão-Ferreira
Não fora o mar
Não fora o mar,
e eu seria feliz na minha rua,
neste primeiro andar da minha casa
a ver, de dia, o sol, de noite a lua,
calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar,
e seriam contados os meus passos,
tantos para viver, para morrer,
tantos os movimentos dos meus braços,
pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar,
e os seus sonhos seriam sem violência
como irisadas bolas de sabão,
efémero cristal, branca aparência,
e o resto — pingos de água em minha mão.
Não fora o mar,
e este cruel desejo de aventura
seria vaga música ao sol pôr
nem sequer brasa viva, queimadura,
pouco mais que o perfume duma flor.
Não fora o mar
e o longo apelo, o canto da sereia,
apenas ilusão, miragem,
breve canção, passo breve na areia,
desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar
e, resignada, em vez de olhar os astros
tudo o que é alto, inacessível, fundo,
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros,
iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar
e o meu canto seria flor e mel,
asa de borboleta, rouxinol,
e não rude halali, garra cruel,
Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar
e este potro selvagem, sem arção,
crinas ao vento, com arreio,
meu altivo, indomável coração,
Não fora o mar
e comeria à mão,
não fora o mar
e aceitaria o freio.
Fernando
Excerto de Moby Dick de Herman Melville
Há alguns anos (...) achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho – percebo que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio. (...)E não há nisto nada de extraordinário. Embora inconscientemente, quase todos o homens sentem, numa altura ou noutra da vida, a mesma atracção pelo oceano.(...) Observem a multidão que se junta para contemplar as águas. Postados como sentinelas em toda a periferia da cidade, milhares e milhares de pessoas contemplam, hipnotizadas, o oceano. (...)É (...) gente ligada à terra, gente que passa os dias da semana entre quatro paredes de cal e gesso – amarrada aos escritórios, colada aos bancos, debruçada sobre as escrivaninhas. Então porque se encontra ali? Que força os arrasta para aquele lugar?
Helena Policarpo
Índia de Margarida Pedrosa do livro "Tantas Mãos, a mesma Primavera"
Paulo
A Vida
Na água do rio que procura o mar;
No mar sem fim; na luz que nos encanta;
Na montanha que aos ares se levanta;
No céu sem raias que deslumbra o olhar;
No astro maior, na mais humilde planta;
Na voz do vento, no clarão solar;
No inseto vil, no tronco secular,
— A vida universal palpita e canta!
Vive até, no seu sono, a pedra bruta...
Tudo vive! E, alta noite, na mudez
De tudo, – essa harmonia que se escuta
Correndo os ares, na amplidão perdida,
Essa música doce, é a voz, talvez,
Da alma de tudo, celebrando a Vida!
Cecília
de Dulce Pontes
Garça perdida
Anoiteceu
no meu olhar de feiticeira,
de estrela do mar, de céu, de lua cheia,
de garça perdida na areia.
Anoiteceu no meu olhar,
perdi as penas, não posso voar,
deixei filhos e ninhos,
cuidados, carinhos, no mar...
Só sei voar dentro de mim
neste sonho de abraçar
o céu sem fim, o mar, a terra inteira!
E trago o mar dentro de mim,
com o céu vivo a sonhar e vou sonhar até ao fim,
até não mais acordar...
Então, voltarei a cruzar este céu e este mar,
voarei, voarei sem parar à volta da terra inteira!
Ninhos faria de lua cheia e depois,
dormiria na areia...
no meu olhar de feiticeira,
de estrela do mar, de céu, de lua cheia,
de garça perdida na areia.
Anoiteceu no meu olhar,
perdi as penas, não posso voar,
deixei filhos e ninhos,
cuidados, carinhos, no mar...
Só sei voar dentro de mim
neste sonho de abraçar
o céu sem fim, o mar, a terra inteira!
E trago o mar dentro de mim,
com o céu vivo a sonhar e vou sonhar até ao fim,
até não mais acordar...
Então, voltarei a cruzar este céu e este mar,
voarei, voarei sem parar à volta da terra inteira!
Ninhos faria de lua cheia e depois,
dormiria na areia...
o João
falou-nos da grande barreira de coral
do livro 100 maravilhas do mundo
Augusto |
o Augusto
leu-nos "A Portuguesa" de Henrique Lopes de Mendonça
António
e ainda da "Mensagem" de Fernando Pessoa,
Prece
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem --ou desgraça ou ânsia--
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância --
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Cristina
Outro testamento de Vitorino Nemésio
pode ler-se e ouvir-se aqui
e de António Nobre
Vou sobre o oceano
Vou sobre o oceano (o luar, de doce, enleva!)
Por este mar de glória, em plena paz.
Terras da Pátria somem-se na treva
Águas de Portugal ficam, atrás.
Onde vou eu? Meu fado onde me leva?
António, onde vais tu, doido rapaz?
Não sei. Mas o vapor, quando se eleva,
Lembra o meu coração, na ânsia em que jaz.
Ó Lusitânia que te vais à vela!
Adeus! que eu parto (rezarei por ela)
Na minha Nau Catarineta, adeus!
Paquete, meu paquete, anda ligeiro,
Sobe depressa à gávea, marinheiro,
E grita, França! pelo amor de Deus!
o livro do dia
António |
foi trazido pelo António e teve direito a uma
DECLARAÇÃO
Antes de iniciar a leitura do livro do dia, e para evitar futuros equívocos e mal-entendidos, perante os membros do Clube de Leitura em Voz Alta da Biblioteca Municipal de Alcochete reunidos em sessão extraordinária no dia 21 de Outubro de 2010, eu, António José Correia Soares, nascido a 06 de Dezembro de 1936, sou forçado a fazer a seguinte declaração:
NASCI NO ANO DA MORTE DE RICARDO REIS!
Para minha frustação, não tive notícia do infausto acontecimento, por diversas razões que acho meu dever levar ao vosso conhecimento.
1. Não havia Internet nem Telemóvel.
2. A Televisão ainda não tinha chegado a Portugal.
3. A Telefonia ainda não frequentava a minha casa.
4. Os jornais O Século e o Diário de Notícias frequentavam a minha casa, mas de pouco me serviam, pois eu, acreditem, nasci totalmente analfabeto! Essa situação embaraçosa resolveu-se em 5 cinco anos e quando fui para a escola já sabia ler e escrever. Nesse tempo em que as mulheres estavam em casa, entre mães, tias e avós o ensino precoce era garantido ás criancinhas.
Passaram muitos anos - 73 ao todo – e de vez em quando chegavam-me notícias de um homem magro, mal encarado, enfiado entre um sobretudo comprido, uns óculos da época e um chapéu enterrado na cabeça. Diziam que era guarda livros na Baixa lisboeta – dizia ele, porque o poeta é um fingidor. Nada disso. O homem que consegue morrer um ano antes do seu heterónimo Ricardo Reis, era um ser de vastíssima cultura, multifacetado. A sua obra só chegou ao meu conhecimento este ano e não antes, por manifesta falta de interesse, pois até tenho na prateleira - no bom e no mau sentido - os dois volumes das Obras Completas com Poesias Inéditas editado pela ÁTICA. No passado inverno, quando a Biblioteca Municipal de Alcochete organizou um curso de 5 dias, dado por um professor universitário, sobre 5 momentos da literatura portuguesa do século 20, esbarrei com o homem que quis morrer antes de eu nascer. Nasceu em Lisboa a 18 de Junho de 1888, morreu de cirrose hepática aos 47 anos, a 30 de Setembro de 1935. Tendo escrito a sua última frase em Inglês – I DON´T KNOW WHAT TOMORROW WILL BRING – (não sei o que o futuro trará), pode ter a certeza de que o futuro lhe destinou o nome maior entre os maiores nomes da literatura mundial de todos os tempos e lugares.
Ah! Já me estava a esquecer. O nome do homem é Fernando Pessoa!
DECLARAÇÃO
Antes de iniciar a leitura do livro do dia, e para evitar futuros equívocos e mal-entendidos, perante os membros do Clube de Leitura em Voz Alta da Biblioteca Municipal de Alcochete reunidos em sessão extraordinária no dia 21 de Outubro de 2010, eu, António José Correia Soares, nascido a 06 de Dezembro de 1936, sou forçado a fazer a seguinte declaração:
NASCI NO ANO DA MORTE DE RICARDO REIS!
Para minha frustação, não tive notícia do infausto acontecimento, por diversas razões que acho meu dever levar ao vosso conhecimento.
1. Não havia Internet nem Telemóvel.
2. A Televisão ainda não tinha chegado a Portugal.
3. A Telefonia ainda não frequentava a minha casa.
4. Os jornais O Século e o Diário de Notícias frequentavam a minha casa, mas de pouco me serviam, pois eu, acreditem, nasci totalmente analfabeto! Essa situação embaraçosa resolveu-se em 5 cinco anos e quando fui para a escola já sabia ler e escrever. Nesse tempo em que as mulheres estavam em casa, entre mães, tias e avós o ensino precoce era garantido ás criancinhas.
Passaram muitos anos - 73 ao todo – e de vez em quando chegavam-me notícias de um homem magro, mal encarado, enfiado entre um sobretudo comprido, uns óculos da época e um chapéu enterrado na cabeça. Diziam que era guarda livros na Baixa lisboeta – dizia ele, porque o poeta é um fingidor. Nada disso. O homem que consegue morrer um ano antes do seu heterónimo Ricardo Reis, era um ser de vastíssima cultura, multifacetado. A sua obra só chegou ao meu conhecimento este ano e não antes, por manifesta falta de interesse, pois até tenho na prateleira - no bom e no mau sentido - os dois volumes das Obras Completas com Poesias Inéditas editado pela ÁTICA. No passado inverno, quando a Biblioteca Municipal de Alcochete organizou um curso de 5 dias, dado por um professor universitário, sobre 5 momentos da literatura portuguesa do século 20, esbarrei com o homem que quis morrer antes de eu nascer. Nasceu em Lisboa a 18 de Junho de 1888, morreu de cirrose hepática aos 47 anos, a 30 de Setembro de 1935. Tendo escrito a sua última frase em Inglês – I DON´T KNOW WHAT TOMORROW WILL BRING – (não sei o que o futuro trará), pode ter a certeza de que o futuro lhe destinou o nome maior entre os maiores nomes da literatura mundial de todos os tempos e lugares.
Ah! Já me estava a esquecer. O nome do homem é Fernando Pessoa!
A sugestão foi "Livro de Versos" de Álvaro de Campos, e o poema escolhido foi:
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
Àparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Como chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê —
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para àquem do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Etiquetas:
CLeVA 1.0,
livro do dia
A escolha da Isabel
Quando olho para o Mar
Sinto em mim transformação
Porque fico deslumbrada
Fico maravilhada
E dá-me palpitação
2
Ele é azul
Ele é Prata
Não tem cor de definir
Sei que me dá Paixão
E Fico com a sensação
De nunca querer Sair
3
É tão intenso
Tão dócil
Tão Arrogante
Tão Envolvente
Tão Empolgante
Que me sinto sua Amante
4
E na hora de partir
De certeza voltarei
Porque o mar que tanto Adoro
E é com ele que choro
É meu Senhor
É meu Rei
de Natália e Isabel Pinto
Estrela do Mar
Era muita a escolha, mas pouco o tempo!
É mais bonita cantada por ele...
Estrela do Mar
Jorge Palma
É mais bonita cantada por ele...
Estrela do Mar
Jorge Palma
Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte
e em que o sono parecia disposto a não vir
fui estender-me na praia sozinho ao relento
e ali longe do tempo acabei por dormir
Acordei com o toque suave de um beijo
e uma cara sardenta encheu-me o olhar
ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
ela riu-se e disse baixinho: estrela do mar
Sou a estrela do mar
só a ele obedeço, só ele me conhece
só ele sabe quem sou no princípio e no fim
só a ele sou fiel e é ele quem me protege
quando alguém quer à força
ser dono de mim
Não sei se era maior o desejo ou o espanto
mas sei que por instantes deixei de pensar
uma chama invisível incendiou-me o peito
qualquer coisa impossível fez-me acreditar
Em silêncio trocámos segredos e abraços
inscrevemos no espaço um novo alfabeto
já passaram mil anos sobre o nosso encontro
mas mil anos são pouco ou nada para a estrela do mar
As Árvores do Centenário
Porque as coisas acontecem assim, acho que se vamos começar a fazer qualquer coisa... podemos começar por aqui! O que acham? Também podíamos pensar animar a sessão de plantações com leituras...
Horário: 22 novembro 2010 às 8:00 a 28 novembro 2010 às 20:00
Local: TODOS OS CONCELHOS
Organizado por: BOSQUES DO CENTENÁRIO
Horário: 22 novembro 2010 às 8:00 a 28 novembro 2010 às 20:00
Local: TODOS OS CONCELHOS
Organizado por: BOSQUES DO CENTENÁRIO
Descrição do evento:
Cem anos por cem árvores!
No ano da comemoração dos 100 anos da República vamos plantar 100 árvores e deixar um testemunho por mais 100 anos. Contacta a tua autarquia e vem plantar este bosque com espécies autóctones da flora portuguesa, no teu concelho!
Participa! * Uma floresta autóctone é aquela que mais se adapta e que participou na formação de um determinado local ou território.
Preserva a biodiversidade, regula o clima e pode até evitar os incêndios.
Entre 22 e 28 de Novembro, vamos semear os Bosques do Centenário
As florestas são um monumento vivo, a melhor memória e a melhor herança
que podemos deixar para os próximos cem anos e para as gerações futuras.
Aprende a identificar as nossas espécies, a recolher as sementes e a fazer um pequeno viveiro.
Sabe mais através do livro “Da Semente à Árvore” em www.criarbosques.org
A Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, a Autoridade Florestal Nacional,
a Associação Nacional de Municípios Portugueses, a Quercus e com o apoio do Movimento Cívico Limpar Portugal, juntaram-se para fazer da Floresta Autóctone Portuguesa, uma grande causa para os próximos 100 anos.
Lança a semente deste grande projecto!
Etiquetas:
CLeVA 1.0,
Floresta,
Plantar Portugal,
propostas
12 outubro 2010 - FLORESTA
Leituras:
O João falou-nos das sequóias
100 Maravilhas do Mundo
Como curiosidade e porque falámos nelas # As sequóias de Sintra
A Mila leu-nos um poema retirado do filme da Disney;
Pocahontas
Mariana
O Génio da Floresta
Texto de Maria de Lurdes Marcelo
Ilustração de Maria João Lopes
Alexandra Justino
A cidade e as serras - Eça de Queirós
Helena Ramos
O homem que plantava árvores - Jean Gionno
Helena Machado
Poema da árvore - António Gedeão
A Cecília leu-nos um texto seu
Os mistérios do outono
Aqui está o blog:
As coisas malucas da Sissi
Helena Policarpo
O bosque chileno
Confesso que vivi - Pablo Neruda
António
Para Walt Whitman nos tempos do macartismo - Alexandre O´Neill
Curiosidade:
Sabem que a biblioteca do Alexandre O`Neill foi doada à Biblioteca Municipal de Constância, está disponível para o público e ainda não foi "tratada"?
Pode ser um passeio bonito, podem folhear-se os livros, ver anotações que provavelmente nunca ninguém leu, encontrar inéditos, ver imensos livros autografados pelos próprios autores... enfim... pode ser uma aventura
Atenção NÃO CLIQUES AQUI
Paula
A árvore generosa - Shel Silverstein
Daniel
A floresta - Sophia de Mello Breyner Andresen
O Augusto leu-nos um poema de sua autoria
O que digo na floresta quando o meu amor me dói
Fernando
A selva - Ferreira de Castro
Virgínia
O físico prodigioso - Jorge de Sena
A Cristina falou-nos do Chico Mendes através das palavras de
Zuenir Ventura
Um herói trágico
O país que produziu alguns dos mitos olímpicos e dionisíacos do século XX - Pelé, Tom Jobim, Ayrton Senna, Ronaldo - criou também um herói trágico e transformou-o no proto-mártir da causa ecológica, um homem que precisou morrer para ser conhecido em sua pátria, ele que já era, como escreveu o New York Times, “um símbolo de todo o planeta”.
De fato, o seringueiro Chico Mendes foi quem mobilizou não só o Brasil, mas também o mundo para a defesa da floresta amazônica, à qual acabaria dando sua vida. Certo de que estava marcado para morrer, ele não só denunciou a trama, como achava que morreria em vão. “Se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a pena. Mas ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero viver”.
Ele disse isso e pouco depois, às 18h45 do dia 22 de dezembro de 1988, foi assassinado, aos 44 anos, na porta da cozinha de sua casa em Xapuri, uma pequena cidade de cinco mil habitantes no estado amazônico do Acre. “Ele vinha com as mãos na cabeça, todo vermelho de sangue”, contou Ilzamar, que ouviu um estouro e correu para o marido. “Quando eu quis pegar no seu braço, ele caiu e ficou se debatendo. Aí vi que estava morrendo”.
(...)O autor confesso do disparo, Darci, era filho de Darli Alves da Silva, o fazendeiro mandante do crime.
Só então e diante da grande repercussão internacional, é que o Brasil começou a desconfiar, cheio de culpa, de que tinha perdido o que se custa tanto a construir: um verdadeiro líder.
Como um Gandhi dos trópicos, Chico organizou pacificamente os seringueiros para lutar pela preservação da floresta, que vinha sendo derrubada no Acre desde a década de 70 para dar lugar às grandes pastagens de gado. O movimento de resistência usava uma tática simples e eficaz: o empate, que consistia em impedir os desmatamentos, colocando os seringueiros, seus filhos e mulheres, todos desarmados, entre os peões armados de serras e as árvores.
Também hábil político e homem de diálogo, Chico conseguiu desfazer uma inimizade histórica entre seringueiros e índios. que sob sua influência se aliaram numa grande frente conhecida pelo nome de Povos da Floresta. Condecorado pela ONU e respeitado pelas organizações internacionais de proteção ao meio ambiente, Chico demonstrou que era possível promover um desenvolvimento racional para a floresta amazônica, sem transformá-la em santuário intocável, mas também sem devastá-la.
(...)
Chico sabia que precisava de aliados, não podia ficar isolado em Xapuri lutando contra poderosos interesses de fazendeiros e pecuaristas. Alguns antropólogos e representantes de entidades ambientalistas dos Estados Unidos e da Europa se encarregaram de projetá-lo no circuito internacional.
Em 1987, ele foi o primeiro brasileiro a receber o prêmio Global 500 das Nações Unidas, em Londres. No ano seguinte foi convidado a participar da reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento.
(...)
A fama que ele alcançara junto a instituições e entidades estrangeiras, o seu carisma, tudo isso aliado aos incômodos empates que organizava em Xapuri, devem ter dado a seus inimigos a certeza de que a única maneira de barrar sua ação catalisadora era a morte.
Por isso ele sabia que ia ser assassinado e denunciou incansavelmente a ameaça. “Não quero flores no meu enterro, pois sei que vão arrancá-las da floresta”, escreveu no dia 5 de dezembro numa mensagem-despedida. “Quero apenas que meu assassinato sirva para acabar com a impunidade dos jagunços, sob a proteção da Polícia Federal do Acre e que, de 1975 para cá, já mataram mais de 50 pessoas”.
Poucas vezes a polícia brasileira contou com uma lista tão completa de acusados, fornecida pela própria vítima. Nem isso, porém, serviu para impedir a morte anunciada.
Chico Mendes acertou quando anunciou que ia ser morto, mas errou ao achar que sua morte poderia ser inútil. Se ela não salvou a Amazônia, serviu pelo menos para intensificar o debate planetário sobre o destino da região. E mais: esse assassinato - antecedido por dezenas de execuções de outros líderes rurais - terá servido para denunciar que em um rico e extenso país ainda se mata por questões de terra.
Aquele estouro que Ilzamar ouviu chegou ao mundo todo. Nunca um tiro dado no Brasil ecoou tão longe.
Zuenir Ventura - Jornalista, ganhador do Prêmio Esso com a série de reportagens sobre Chico Mendes publicada no Jornal do Brasil, e autor de vários livros, entre os quais “Chico Mendes – Crime e Castigo”, publicado em 2003 pela editora Companhia das Letras.
Chico Mendes: crime e castigo - Zuenir Ventura
"A permanência de Chico Mendes quinze anos depois de sua morte só reforça um mistério que não consegui decifrar: como foi possível nascer e crescer no meio da floresta, num pequeno canto verde que cremos mais propício aos bichos e às plantas, um exemplar tão fecundo da espécie humana?"
EM MEMÓRIA DE CHICO MENDES
Chegam notícias do Brasil,o Chico
Mendes foi assassinado,a morte
enrola-se agora nos primeiros frios,
nem sequer a tristeza tem sentido,
a bola continua em órbita,um dia
estoira,o universo ficará mais limpo.
de Eugénio de Andrade
e por fim aqui fica a ligação para a Biblioteca da Floresta
Floresta (uma leitura diferente)
Depois do desafio achei que uma maneira diferente de ler seria ... pegar num livro e sem mais nem porquê lê-lo ali mesmo em voz alta. Era no Metro... voltei a mim e disse "sozinha? nem pensar!" Uns dias mais tarde recolhi estas imagens para ilustrar propositadamente o poema Cidade. Tinha-o descoberto no Verão e achei que quando o tema da "Floresta" saísse seria uma boa escolha. O som não tem grande qualidade por isso deixo aqui a transcrição...
Obra Poética I
Caminho
CidadeSophia de Mello Breyner Andresen
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
Obra Poética I
Caminho
Floresta ( leitura como sempre )
Esta vai ser a minha leitura "como sempre". Aqui fica a versão completa do conto "O homem que plantava árvores" de Jean Gionno. É um texto que todos deviam conhecer. O autor libertou-o de todos os direitos de reprodução para que pudesse ser divulgado por toda a parte, sem restrições.
O HOMEM QUE PLANTAVA ÁRVORES
Para que o carácter de um ser humano revele qualidades verdadeiramente excepcionais, necessitamos da boa fortuna de poder observar as suas acções durante longos anos. Se essa acção for despojada de todo o egoísmo, se a ideia que a dirige é de uma generosidade sem exemplo, se é absolutamente certo que não se procurava qualquer recompensa e que tenha deixado sobre o mundo marcas visíveis, então, sem risco de errarmos, estamos perante um indivíduo inesquecível.
Há cerca de uns quarenta anos, fiz uma longa caminhada a pé por altitudes absolutamente desconhecidas dos turistas, nessa muito antiga região dos Alpes que penetra na Provença.
Esta região está delimitada a sudoeste e a sul pelo curso médio do Durance, entre Sisteron e Mirabeau; a norte pelo curso superior do Drôme, desde a sua nascente até ao rio Die; a oeste pelas planícies de Comtat Venaissin e os contrafortes de Mont-Ventoux. Compreende toda a parte norte da região dos Baixos Alpes, o sul da Drôme e um pequeno enclave de Vaucluse.
Era, na altura em que empreendi o meu longo passeio por estes desertos, terreno nu e monótono até aos 1200 a 1300 metros de altitude. Nada lá crescia a não ser alfazemas selvagens.
Atravessei esta região na sua maior largura e depois de três dias de marcha, encontrei-me face a uma desolação exemplar. Acampei ao lado de um esqueleto de aldeia abandonada. Já não tinha mais água e eu precisava de encontrar alguma. Estas casas aglomeradas, em ruínas como um velho ninho de vespas, fizeram-me pensar que deveria ter havido ali, em tempos, uma fonte ou poço. E sim, havia uma fonte, mas seca. As cinco ou seis casas, sem telhado, roídas de vento e de chuva e a pequena capela com o sino em colapso, estavam alinhadas como as casas e capelas nas aldeias vivas, mas toda a vida tinha desaparecido.
Era um belo dia de Junho, muito solarengo, mas sobre estas terras sem abrigo e a tocar o céu, o vento soprava com uma brutalidade insuportável. Os seus grunhidos nas carcassas das casas eram os de uma fera perturbada durante a sua refeição.
Tive que levantar o acampamento. A cinco horas de marcha ainda não tinha encontrado água e nada me dava a esperança de a encontrar. Por todo lado a mesma secura, as mesmas ervas lenhosas. Ao longe apercebi-me de uma pequena silhueta negra, de pé. Tomei-a por um tronco de árvore solitário. Um pouco ao acaso dirigi-me para ela. Era um pastor. Uma trintena de ovelhas, deitadas sobre a terra escaldante, repousavam perto dele.
Deu-me de beber do seu cantil, e um pouco mais tarde conduziu-me ao redil, numa ondulação do planalto. Retirava a sua água - excelente - de uma nascente natural, muito profunda, sobre a qual tinha instalado um guincho rudimentar.
Este homem falava pouco. É comum, entre os solitários, mas era seguro de si e confiante nessa segurança. Era insólito, nesta terra despojada de tudo. Não habitava uma cabana, mas uma verdadeira casa de pedra onde se podia ver como o seu esforço pessoal tinha remendado a ruína que tinha encontrado à sua chegada. O telhado era sólido e estanque. O vento que o fustigava fazia sobre as telhas o ruído do mar na praia.
A sua casa estava em ordem, a louça lavada, o soalho varrido, o fuzil oleado; a sopa borbulhava na lareira. Reparei também que estava bem barbeado, que todos os seus botões estavam solidamente cosidos, que as suas roupas estavam remendadas com o cuidado minucioso que torna os remendos invisíveis. Fez-me partilhar a sua sopa e quando lhe ofereci tabaco, disse-me que não fumava. O seu cão, silencioso como ele, era amigável, sem ser bajulador.
Decidiu-se que eu passaria lá a noite; a aldeia mais próxima ainda estava a mais de um dia e meio de marcha. E eu conhecia perfeitamente o carácter das raras aldeias desta região. Há umas quatro ou cinco, dispersas, longe umas das outras, sobre os flancos destas alturas, nos bosques de carvalhos brancos, nas extremidades dos caminhos transitáveis. São habitadas por madeireiros, que fazem carvão. São lugares onde se vive mal. As famílias lutam umas contras as outras, num clima que é de uma rudeza excessiva, seja no Verão ou no Inverno, e que exacerba o egoísmo. A ambição irracional torna-se desmesurada, num desejo contínuo de sair dali.
Os homens levam o carvão à cidade com os seus camiões e depois voltam. As mais sólidas qualidades vergam sob este perpétuo duche escocês. As mulheres destilam ressentimentos. Há concorrência para tudo, seja pela venda do carvão, ou pelo banco da igreja, pelas virtudes que disputam entre elas, pelos vícios que disputam entre eles e pela livre circulação de vícios e virtudes, sem descanso. Também lá o vento não repousa, irritando os nervos. Há epidemias de suicídios e numerosos casos de loucura, quase sempre mortais.
O pastor que não fumava foi procurar um pequeno saco e espalhou na mesa um monte de bolotas. Pôs-se a examiná-las, uma após outra, com muita atenção, separando as boas das más. Eu fumava o meu cachimbo. Propus-me ajudá-lo. Ele disse-me que a tarefa era sua. De facto: vendo o cuidado que punha nesta tarefa, não insisti. Foi toda a nossa conversa. Quando ele tinha separado, para o lado das boas, um monte de bolotas bastante grande, juntou-as em montes de dez. E fazendo isto eliminou ainda as mais pequenas, ou as que estavam fendidas ligeiramente, pois agora examinava-as ainda com mais atenção. Quando tinha à frente dele um cento de glandes perfeitas, parou e fomos deitar-nos.
A convivência com este homem dava paz. Pedi-lhe, no dia seguinte, permissão para descansar todo o dia junto dele. Ele achou isso natural, ou mais exactamente, deu-me a impressão de que nada o perturbaria. Este repouso não era absolutamente obrigatório, mas eu estava intrigado e queria saber mais. Fez sair o seu rebanho e levou-o à pastagem. Antes de partir, mergulhou num balde de água o pequeno saco onde tinha colocado as bolotas cuidadosamente escolhidas e contadas.
Reparei que em jeito de bastão, ele transportava uma barra de ferro da espessura de um polegar e com cerca de metro e meio de comprimento. Fiz como se vagueasse em repouso e segui uma rota paralela à sua. A pastagem dos seus animais era no fundo de um vale. Deixou o pequeno rebanho à guarda do cão e subiu para o lugar onde eu estava. Tive algum receio que viesse para me repreender da minha indiscrição, mas não: era o seu caminho e convidou-me a acompanhá-lo se não tivesse melhor que fazer. Ia a duzentos metros dali, para o cume.
Chegados ao seu destino, pôs-se a furar a terra com o seu bastão de ferro. Fazia um buraco no qual colocava uma glande, depois cobria-o. Plantava carvalhos. Perguntei-lhe se a terra lhe pertencia. Respondeu-me que não. Sabia de quem era? Ele não sabia. Supunha que seria terra baldia, ou talvez fosse propriedade de alguém que não se importasse? Ele não se importava de não conhecer os proprietários. E plantou assim um cento de bolotas com um cuidado extremo.
Depois da refeição do meio-dia, recomeçou a escolher as sementes. Acho que coloquei tanta insistência nas minhas perguntas que ele respondeu. Desde há três anos que plantava árvores nesta solidão. Já tinha plantado cem mil. Dessas, vinte mil tinham vingado. Das vinte mil contava perder metade, devido aos roedores ou a tudo quanto seja impossível de prever nos desígnios da providência. Sobrariam dez mil carvalhos que iriam crescer nesta região onde antes nada existia.
Foi nesta altura que me perguntei sobre a idade deste homem. Tinha visivelmente mais de cinquenta anos. Cinquenta e cinco, disse-me ele. Chamava-se Elzéard Bouffier. Tinha possuído uma quinta na planície. Tinha feito a sua vida. Perdeu o filho único, depois a esposa. Retirou-se para a solidão onde tirava prazer de viver lentamente, com as suas ovelhas e o seu cão. Ele tinha concluído que esta região morria por falta de árvores. Acrescentou que como não tinha tarefas muito importantes, tinha resolvido remediar este estado de coisas.
Levando eu próprio nessa altura, apesar da minha jovem idade, uma vida solitária, sabia tocar com delicadeza as almas dos solitários. No entanto cometi um erro. Precisamente a minha jovem idade me forçava a imaginar o futuro em função de mim próprio e de uma certa busca de felicidade. Disse-lhe que em trinta anos esses dez mil carvalhos seriam magníficos. Respondeu-me simplesmente que, se Deus lhe permitisse viver, dentro de trinta anos já teria plantado tantas outras que estas dez mil não seriam mais do que uma gota de água no oceano.
Ele já estudava a reprodução das faias e tinha perto de sua casa um viveiro. As plantinhas, que tinha protegido das suas ovelhas por uma barreira de rede, eram belíssimas. Disse-me que também estava a pensar em bétulas para as zonas mais profundas, onde me disse que uma certa humidade dormia a alguns metros abaixo da superfície.
Separámo-nos no dia seguinte.
No ano seguinte começou a guerra de 14 e fui engajado durante cinco anos. Um soldado de infantaria não podia pensar em árvores. Para dizer a verdade, a coisa em si não me tinha marcado profundamente: tinha-a considerado como uma diversão, uma colecção de selos, e esqueci-a.
Saído da guerra tive direito a um prémio de desmobilização minúsculo, e um grande desejo de respirar um pouco de ar puro. Foi sem outra ideia pré-concebida - excepto esta - que retomei o caminho destas regiões desertas.
A região não tinha mudado. No entanto, para além da aldeia morta, percebi ao longe uma espécie de névoa cinzenta que recobria as alturas como um tapete. Desde a véspera, tinha-me posto a pensar no pastor que plantava árvores. « Dez mil carvalhos, dizia eu, devem ocupar um espaço muito grande. ».
Tinha visto morrer tanta gente durante os cinco anos que podia imaginar facilmente a morte de Elzéar Bouffier, até porque, quando temos vinte anos, consideramos que os homens de cinquenta são velhos a quem já nada resta senão morrer. Ele não estava morto. Estava ainda muito ágil. E tinha mudado de profissão. Já só tinha quatro ovelhas, mas possuía agora uma centena de colmeias. Tinha-se desembaraçado do rebanho que punha em perigo as suas plantações de árvores. Porque, disse ele (e eu verifiquei) que não se tinha preocupado muito com a guerra. Tinha continuado imperturbavelmente a plantar.
Os carvalhos de 1910 tinham agora dez anos e estavam mais altos que eu e ele. O espectáculo era impressionante. Eu estava literalmente privado de palavras e como ele não falava, passámos todo o dia em silêncio a passear na floresta. Ela tinha, em três secções, onze quilómetros de comprimento e três quilómetros na maior largura. Se tudo tinha saído das mãos deste homem - sem meios técnicos - compreende-se que os homens possam ser tão eficazes quanto Deus em domínios que não a destruição.
Tinha perseguido a sua ideia e as faias que me chegavam aos ombros, a perder de vista eram prova disso. Os carvalhos eram grossos e já tinham ultrapassado a idade em que estavam à mercê dos roedores; quanto aos desígnios da Providência, para destruir a obra criada ela precisaria agora de recorrer aos ciclones. Mostrou-me admiráveis bosques de vidoeiros que tinham já cinco anos, eram de 1915, da época em que eu combatia em Verdun. Plantou-as em todas as zonas mais fundas onde supunha, com razão, que havia humidade à flor da terra. Eram tenras como jovens, e muito decididas.
A criação parecia, aliás, operar em cadeia. Ele não se importava com isso e prosseguia obstinadamente a sua tarefa, muito simplesmente. Mas a descer para a aldeia, vi correr água nos regatos que estavam secos desde que havia memória. Foi a mais formidável operação de reacção que me foi dado ver.
Estes riachos tinham tido água em tempos antigos. Algumas destas aldeias tristes de que vos falei no início foram construídas sobre antigas aldeias galo-romanas de que subsistiam ainda alguns traços, nas quais os arqueólogos tinham encontrado anzóis em lugares onde no século vinte seria necessário o recurso a cisternas para ter um pouco de água.
O vento também dispersava algumas sementes. Ao mesmo tempo que a água reaparecia, reapareciam os salgueiros, os choupos, os prados, os jardins e as flores e uma certa razão de viver.
Mas a transformação operava-se tão lentamente que entrava no hábito, sem provocar espanto. Os caçadores, que subiam à solidão, à procura de lebres ou javalis, já tinham constatado a abundância de pequenas árvores, mas atribuíam isso à magia natural da terra. É por isso que ninguém havia tocado no trabalho deste homem. Se houvesse alguma suspeita, tê-lo-iam contrariado. Era inimaginável. Quem poderia pensar, nessas aldeias e na administração, uma tal obstinação na generosidade mais magnífica?
A partir de 1920, nunca mais passei um ano sem visitar Elzéard Bouffier. Nunca o vi hesitar ou duvidar. Só Deus saberá, pois o próprio Deus ali cresce! Não contabilizei os seus problemas. Podemos imaginar que para este resultado teve que vencer a adversidade; que para assegurar a vitória de uma tal paixão, teve que lutar contra o desespero. Ele tinha, durante um ano, plantado dez mil bordos. Morreram todos. No ano seguinte, abandonou os bordos para retomar as faias, que se desenvolviam melhor que os carvalhos.
Para dar uma ideia da singularidade desta pessoa, é preciso não esquecer que ele trabalhava numa solidão absoluta; tão absoluta que para o final da sua vida tinha perdido o hábito de falar. Ou talvez não visse nisso qualquer necessidade?
Em 1933, recebeu a visita de um guarda-florestal atónito. Este funcionário intimou-o a não fazer fogo fora de casa, para não colocar em perigo o crescimento desta floresta natural. Era a primeira vez, disse-lhe este homem ingénuo, que se via uma floresta nascer sozinha. Nesta altura ele ia plantar faias a 12 kilómetros de sua casa. Para evitar o trajecto de ida e volta - pois agora ele já tinha setenta e cinco anos - pensou construir uma cabana de pedra nos locais das suas plantações. Um ano mais tarde tinha-o feito.
Em 1935, uma verdadeira delegação administrativa veio examinar a «floresta natural». Havia uma alta figura dos serviços de Águas e Florestas, um deputado, vários técnicos. Pronunciaram-se muitas palavras inúteis. Decidiu-se que se iria fazer qualquer coisa e, felizmente, não se fez nada senão a única coisa útil: pôr a floresta sob salvaguarda do Estado e interditar que se fizesse carvão. Porque era impossível não ser subjugado pela beleza destas jovens árvores em pleno crescimento. E até no deputado ela exerceu o seu poder de sedução.
Eu tinha um amigo entre os representantes dos serviços florestais que foram na delegação. Expliquei-lhe o mistério. Um dia, na semana seguinte, fomos ambos à procura de Elzéard Bouffier. Encontrámo-lo em pleno trabalho, a vinte kilómetros de onde a inspecção tinha estado. Este guarda-florestal era meu amigo por alguma razão. Conhecia o valor das coisas. Soube permanecer silencioso. Ofereci os ovos que tinha levado de presente. Partilhámos o lanche entre os três e algumas horas passaram na contemplação muda da paisagem.
A encosta de onde vínhamos estava coberta de árvores com seis a sete metros de altura. Lembrei-me do aspecto do campo em 1913: o deserto... o trabalho pacífico e continuado, o ar vivo da altitude, a frugalidade e sobretudo a serenidade da alma, tinham dado a este velho uma santidade quase solene. Era um atleta de Deus. Perguntei-me quantos hectares ele iria cobrir ainda de árvores.
Antes de partir, o meu amigo fez simplesmente uma breve sugestão acerca de certas espécies às quais o terreno onde estávamos parecia convir. Mas não insistiu. «Por uma boa razão, disse-me ele mais tarde, pois este homem sabe mais do que eu.» Ao fim de uma hora de marcha - a ideia tinha feito o caminho com ele - acrescentou: «Ele sabe mais que qualquer pessoa. Encontrou um meio de ser feliz!»
Foi graças a este meu amigo que não só a floresta, mas a felicidade deste homem foram protegidas. Fez nomear três guardas florestais para sua protecção e aterrorizou-os de tal modo que eles foram sempre insensíveis a todas as garrafas de vinho que os madeireiros pudessem propor.
A obra só correu um risco grave durante a guerra de 1939. Os automóveis circulavam a gasogénio, e não havia matas que chegassem - Começaram a fazer-se cortes nos carvalhos de 1910, mas esta zona era tão longe das estradas circuláveis que a empresa se revelou um desastre financeiro. Foi abandonada. O pastor já nada viu. Estava a trinta quilómetros dali, continuando pacificamente o seu trabalho, ignorando a guerra de 39 como tinha ignorado a de 14.
Vi Elzéard Bouffier pela última vez em Junho de 1945. Tinha na altura oitenta e sete anos. Tomei de novo a estrada do deserto, mas agora, apesar da devastação em que a guerra tinha deixado o país, havia um carro que fazia o serviço entre o vale do Durance e a montanha. Achei que tinha sido este meio de transporte relativamente rápido que me tinha impedido de reconhecer os locais dos meus antigos passeios. Também me pareceu que o itinerário tinha passado por locais novos. Precisei de um nome de uma aldeia para concluir que estava mesmo nesta região outrora tão arruinada e desolada. O carro deixou-me em Vergons.
Em 1913, este casal de dez ou doze habitações tinha três habitantes. Eram selvagens, detestavam-se, viviam da caça com armadilhas: um pouco no estado físico e moral dos homens da pré-história. As urtigas cresciam em volta das casas abandonadas. A sua condição era de desespero. Só lhes faltava esperar a morte: situação que não dispõe à virtude.
Tudo estava mudado. O próprio ar. Em lugar do vento seco e brutal que me tinha acolhido nesse tempo, soprava uma brisa suave carregada de aromas. Um ruído semelhante ao da água descia das alturas: era o do vento na floresta. Enfim, a coisa mais espantosa, foi ouvir o verdadeiro barulho da água correndo para uma bacia. Tinham feito uma fonte, e ela era abundante e, aquilo que mais me tocou, tinham plantado ao pé dela uma tília que devia ter quatro anos, já crescida, símbolo incontestável de uma ressurreição.
Além disso, Vergons tinha os traços de trabalho para o qual era necessário esperança. A esperança tinha renascido. Tinham-se limpo as ruínas, deitado abaixo os muros quebrados e reconstruído cinco casas. O casal contava agora com vinte e oito habitantes, e quatro novas famílias. As casas novas, rebocadas de fresco, eram rodeadas de hortas e jardins, misturados mas alinhados, os legumes e as flores, as couves e as roseiras, as pereiras e as bocas-de-lobo, a salsa e as anémonas. Era um lugar onde apetecia morar.
A partir daí, fiz o meu caminho a pé. A guerra de que saíramos com dificuldade não tinha permitido o completo desenvolvimento da vida, mas Lázaro tinha saído do túmulo. Sobre os flancos mais baixos da montanha havia campos de cevada e centeio; ao fundo dos vales estreitos verdejavam prados.
Não foram precisos mais de oito anos para que toda a região resplandecesse de saúde. Sobre as ruínas que eu tinha visto em 1913, elevam-se agora limpas fazendas, que denotam uma vida feliz e confortável. As velhas nascentes, alimentadas pela chuva e pela neve que a floresta retinha, puseram-se de novo a correr. Canalizaram-se as águas. Ao lado de cada quinta, nos bosques de bordos, as bacias das fontes transbordam para tapetes de menta fresca. As aldeias foram reconstruídas pouco a pouco. Uma população vinda das planícies onde a terra se vende cara, fixou-se na região e trouxe juventude, movimento, espírito de aventura. Pelos caminhos, encontram-se homens e mulheres bem nutridos, rapazes e raparigas que sabem rir e retomou-se o gosto das festas camponesas. Se olharmos para a antiga população, irreconhecível desde que vive em abundância e somarmos os recém-chegados, mais de dez mil pessoas devem a sua felicidade a Elzéard Bouffier.
Quando penso que um só homem, reduzido aos mais simples recursos físicos e morais passou, para fazer surgir do deserto esta região de Canaa, acho que apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando eu levo em conta toda a magnanimidade da dedicação abnegada, toda a generosidade para obter tal resultado, sou tomado por um imenso respeito por este velho camponês sem cultura que soube levar a cabo esta obra digna de Deus.
Elzéard Bouffier faleceu pacificamente em 1947 no asilo de Banon.
O HOMEM QUE PLANTAVA ÁRVORES
Para que o carácter de um ser humano revele qualidades verdadeiramente excepcionais, necessitamos da boa fortuna de poder observar as suas acções durante longos anos. Se essa acção for despojada de todo o egoísmo, se a ideia que a dirige é de uma generosidade sem exemplo, se é absolutamente certo que não se procurava qualquer recompensa e que tenha deixado sobre o mundo marcas visíveis, então, sem risco de errarmos, estamos perante um indivíduo inesquecível.
Há cerca de uns quarenta anos, fiz uma longa caminhada a pé por altitudes absolutamente desconhecidas dos turistas, nessa muito antiga região dos Alpes que penetra na Provença.
Esta região está delimitada a sudoeste e a sul pelo curso médio do Durance, entre Sisteron e Mirabeau; a norte pelo curso superior do Drôme, desde a sua nascente até ao rio Die; a oeste pelas planícies de Comtat Venaissin e os contrafortes de Mont-Ventoux. Compreende toda a parte norte da região dos Baixos Alpes, o sul da Drôme e um pequeno enclave de Vaucluse.
Era, na altura em que empreendi o meu longo passeio por estes desertos, terreno nu e monótono até aos 1200 a 1300 metros de altitude. Nada lá crescia a não ser alfazemas selvagens.
Atravessei esta região na sua maior largura e depois de três dias de marcha, encontrei-me face a uma desolação exemplar. Acampei ao lado de um esqueleto de aldeia abandonada. Já não tinha mais água e eu precisava de encontrar alguma. Estas casas aglomeradas, em ruínas como um velho ninho de vespas, fizeram-me pensar que deveria ter havido ali, em tempos, uma fonte ou poço. E sim, havia uma fonte, mas seca. As cinco ou seis casas, sem telhado, roídas de vento e de chuva e a pequena capela com o sino em colapso, estavam alinhadas como as casas e capelas nas aldeias vivas, mas toda a vida tinha desaparecido.
Era um belo dia de Junho, muito solarengo, mas sobre estas terras sem abrigo e a tocar o céu, o vento soprava com uma brutalidade insuportável. Os seus grunhidos nas carcassas das casas eram os de uma fera perturbada durante a sua refeição.
Tive que levantar o acampamento. A cinco horas de marcha ainda não tinha encontrado água e nada me dava a esperança de a encontrar. Por todo lado a mesma secura, as mesmas ervas lenhosas. Ao longe apercebi-me de uma pequena silhueta negra, de pé. Tomei-a por um tronco de árvore solitário. Um pouco ao acaso dirigi-me para ela. Era um pastor. Uma trintena de ovelhas, deitadas sobre a terra escaldante, repousavam perto dele.
Deu-me de beber do seu cantil, e um pouco mais tarde conduziu-me ao redil, numa ondulação do planalto. Retirava a sua água - excelente - de uma nascente natural, muito profunda, sobre a qual tinha instalado um guincho rudimentar.
Este homem falava pouco. É comum, entre os solitários, mas era seguro de si e confiante nessa segurança. Era insólito, nesta terra despojada de tudo. Não habitava uma cabana, mas uma verdadeira casa de pedra onde se podia ver como o seu esforço pessoal tinha remendado a ruína que tinha encontrado à sua chegada. O telhado era sólido e estanque. O vento que o fustigava fazia sobre as telhas o ruído do mar na praia.
A sua casa estava em ordem, a louça lavada, o soalho varrido, o fuzil oleado; a sopa borbulhava na lareira. Reparei também que estava bem barbeado, que todos os seus botões estavam solidamente cosidos, que as suas roupas estavam remendadas com o cuidado minucioso que torna os remendos invisíveis. Fez-me partilhar a sua sopa e quando lhe ofereci tabaco, disse-me que não fumava. O seu cão, silencioso como ele, era amigável, sem ser bajulador.
Decidiu-se que eu passaria lá a noite; a aldeia mais próxima ainda estava a mais de um dia e meio de marcha. E eu conhecia perfeitamente o carácter das raras aldeias desta região. Há umas quatro ou cinco, dispersas, longe umas das outras, sobre os flancos destas alturas, nos bosques de carvalhos brancos, nas extremidades dos caminhos transitáveis. São habitadas por madeireiros, que fazem carvão. São lugares onde se vive mal. As famílias lutam umas contras as outras, num clima que é de uma rudeza excessiva, seja no Verão ou no Inverno, e que exacerba o egoísmo. A ambição irracional torna-se desmesurada, num desejo contínuo de sair dali.
Os homens levam o carvão à cidade com os seus camiões e depois voltam. As mais sólidas qualidades vergam sob este perpétuo duche escocês. As mulheres destilam ressentimentos. Há concorrência para tudo, seja pela venda do carvão, ou pelo banco da igreja, pelas virtudes que disputam entre elas, pelos vícios que disputam entre eles e pela livre circulação de vícios e virtudes, sem descanso. Também lá o vento não repousa, irritando os nervos. Há epidemias de suicídios e numerosos casos de loucura, quase sempre mortais.
O pastor que não fumava foi procurar um pequeno saco e espalhou na mesa um monte de bolotas. Pôs-se a examiná-las, uma após outra, com muita atenção, separando as boas das más. Eu fumava o meu cachimbo. Propus-me ajudá-lo. Ele disse-me que a tarefa era sua. De facto: vendo o cuidado que punha nesta tarefa, não insisti. Foi toda a nossa conversa. Quando ele tinha separado, para o lado das boas, um monte de bolotas bastante grande, juntou-as em montes de dez. E fazendo isto eliminou ainda as mais pequenas, ou as que estavam fendidas ligeiramente, pois agora examinava-as ainda com mais atenção. Quando tinha à frente dele um cento de glandes perfeitas, parou e fomos deitar-nos.
A convivência com este homem dava paz. Pedi-lhe, no dia seguinte, permissão para descansar todo o dia junto dele. Ele achou isso natural, ou mais exactamente, deu-me a impressão de que nada o perturbaria. Este repouso não era absolutamente obrigatório, mas eu estava intrigado e queria saber mais. Fez sair o seu rebanho e levou-o à pastagem. Antes de partir, mergulhou num balde de água o pequeno saco onde tinha colocado as bolotas cuidadosamente escolhidas e contadas.
Reparei que em jeito de bastão, ele transportava uma barra de ferro da espessura de um polegar e com cerca de metro e meio de comprimento. Fiz como se vagueasse em repouso e segui uma rota paralela à sua. A pastagem dos seus animais era no fundo de um vale. Deixou o pequeno rebanho à guarda do cão e subiu para o lugar onde eu estava. Tive algum receio que viesse para me repreender da minha indiscrição, mas não: era o seu caminho e convidou-me a acompanhá-lo se não tivesse melhor que fazer. Ia a duzentos metros dali, para o cume.
Chegados ao seu destino, pôs-se a furar a terra com o seu bastão de ferro. Fazia um buraco no qual colocava uma glande, depois cobria-o. Plantava carvalhos. Perguntei-lhe se a terra lhe pertencia. Respondeu-me que não. Sabia de quem era? Ele não sabia. Supunha que seria terra baldia, ou talvez fosse propriedade de alguém que não se importasse? Ele não se importava de não conhecer os proprietários. E plantou assim um cento de bolotas com um cuidado extremo.
Depois da refeição do meio-dia, recomeçou a escolher as sementes. Acho que coloquei tanta insistência nas minhas perguntas que ele respondeu. Desde há três anos que plantava árvores nesta solidão. Já tinha plantado cem mil. Dessas, vinte mil tinham vingado. Das vinte mil contava perder metade, devido aos roedores ou a tudo quanto seja impossível de prever nos desígnios da providência. Sobrariam dez mil carvalhos que iriam crescer nesta região onde antes nada existia.
Foi nesta altura que me perguntei sobre a idade deste homem. Tinha visivelmente mais de cinquenta anos. Cinquenta e cinco, disse-me ele. Chamava-se Elzéard Bouffier. Tinha possuído uma quinta na planície. Tinha feito a sua vida. Perdeu o filho único, depois a esposa. Retirou-se para a solidão onde tirava prazer de viver lentamente, com as suas ovelhas e o seu cão. Ele tinha concluído que esta região morria por falta de árvores. Acrescentou que como não tinha tarefas muito importantes, tinha resolvido remediar este estado de coisas.
Levando eu próprio nessa altura, apesar da minha jovem idade, uma vida solitária, sabia tocar com delicadeza as almas dos solitários. No entanto cometi um erro. Precisamente a minha jovem idade me forçava a imaginar o futuro em função de mim próprio e de uma certa busca de felicidade. Disse-lhe que em trinta anos esses dez mil carvalhos seriam magníficos. Respondeu-me simplesmente que, se Deus lhe permitisse viver, dentro de trinta anos já teria plantado tantas outras que estas dez mil não seriam mais do que uma gota de água no oceano.
Ele já estudava a reprodução das faias e tinha perto de sua casa um viveiro. As plantinhas, que tinha protegido das suas ovelhas por uma barreira de rede, eram belíssimas. Disse-me que também estava a pensar em bétulas para as zonas mais profundas, onde me disse que uma certa humidade dormia a alguns metros abaixo da superfície.
Separámo-nos no dia seguinte.
No ano seguinte começou a guerra de 14 e fui engajado durante cinco anos. Um soldado de infantaria não podia pensar em árvores. Para dizer a verdade, a coisa em si não me tinha marcado profundamente: tinha-a considerado como uma diversão, uma colecção de selos, e esqueci-a.
Saído da guerra tive direito a um prémio de desmobilização minúsculo, e um grande desejo de respirar um pouco de ar puro. Foi sem outra ideia pré-concebida - excepto esta - que retomei o caminho destas regiões desertas.
A região não tinha mudado. No entanto, para além da aldeia morta, percebi ao longe uma espécie de névoa cinzenta que recobria as alturas como um tapete. Desde a véspera, tinha-me posto a pensar no pastor que plantava árvores. « Dez mil carvalhos, dizia eu, devem ocupar um espaço muito grande. ».
Tinha visto morrer tanta gente durante os cinco anos que podia imaginar facilmente a morte de Elzéar Bouffier, até porque, quando temos vinte anos, consideramos que os homens de cinquenta são velhos a quem já nada resta senão morrer. Ele não estava morto. Estava ainda muito ágil. E tinha mudado de profissão. Já só tinha quatro ovelhas, mas possuía agora uma centena de colmeias. Tinha-se desembaraçado do rebanho que punha em perigo as suas plantações de árvores. Porque, disse ele (e eu verifiquei) que não se tinha preocupado muito com a guerra. Tinha continuado imperturbavelmente a plantar.
Os carvalhos de 1910 tinham agora dez anos e estavam mais altos que eu e ele. O espectáculo era impressionante. Eu estava literalmente privado de palavras e como ele não falava, passámos todo o dia em silêncio a passear na floresta. Ela tinha, em três secções, onze quilómetros de comprimento e três quilómetros na maior largura. Se tudo tinha saído das mãos deste homem - sem meios técnicos - compreende-se que os homens possam ser tão eficazes quanto Deus em domínios que não a destruição.
Tinha perseguido a sua ideia e as faias que me chegavam aos ombros, a perder de vista eram prova disso. Os carvalhos eram grossos e já tinham ultrapassado a idade em que estavam à mercê dos roedores; quanto aos desígnios da Providência, para destruir a obra criada ela precisaria agora de recorrer aos ciclones. Mostrou-me admiráveis bosques de vidoeiros que tinham já cinco anos, eram de 1915, da época em que eu combatia em Verdun. Plantou-as em todas as zonas mais fundas onde supunha, com razão, que havia humidade à flor da terra. Eram tenras como jovens, e muito decididas.
A criação parecia, aliás, operar em cadeia. Ele não se importava com isso e prosseguia obstinadamente a sua tarefa, muito simplesmente. Mas a descer para a aldeia, vi correr água nos regatos que estavam secos desde que havia memória. Foi a mais formidável operação de reacção que me foi dado ver.
Estes riachos tinham tido água em tempos antigos. Algumas destas aldeias tristes de que vos falei no início foram construídas sobre antigas aldeias galo-romanas de que subsistiam ainda alguns traços, nas quais os arqueólogos tinham encontrado anzóis em lugares onde no século vinte seria necessário o recurso a cisternas para ter um pouco de água.
O vento também dispersava algumas sementes. Ao mesmo tempo que a água reaparecia, reapareciam os salgueiros, os choupos, os prados, os jardins e as flores e uma certa razão de viver.
Mas a transformação operava-se tão lentamente que entrava no hábito, sem provocar espanto. Os caçadores, que subiam à solidão, à procura de lebres ou javalis, já tinham constatado a abundância de pequenas árvores, mas atribuíam isso à magia natural da terra. É por isso que ninguém havia tocado no trabalho deste homem. Se houvesse alguma suspeita, tê-lo-iam contrariado. Era inimaginável. Quem poderia pensar, nessas aldeias e na administração, uma tal obstinação na generosidade mais magnífica?
A partir de 1920, nunca mais passei um ano sem visitar Elzéard Bouffier. Nunca o vi hesitar ou duvidar. Só Deus saberá, pois o próprio Deus ali cresce! Não contabilizei os seus problemas. Podemos imaginar que para este resultado teve que vencer a adversidade; que para assegurar a vitória de uma tal paixão, teve que lutar contra o desespero. Ele tinha, durante um ano, plantado dez mil bordos. Morreram todos. No ano seguinte, abandonou os bordos para retomar as faias, que se desenvolviam melhor que os carvalhos.
Para dar uma ideia da singularidade desta pessoa, é preciso não esquecer que ele trabalhava numa solidão absoluta; tão absoluta que para o final da sua vida tinha perdido o hábito de falar. Ou talvez não visse nisso qualquer necessidade?
Em 1933, recebeu a visita de um guarda-florestal atónito. Este funcionário intimou-o a não fazer fogo fora de casa, para não colocar em perigo o crescimento desta floresta natural. Era a primeira vez, disse-lhe este homem ingénuo, que se via uma floresta nascer sozinha. Nesta altura ele ia plantar faias a 12 kilómetros de sua casa. Para evitar o trajecto de ida e volta - pois agora ele já tinha setenta e cinco anos - pensou construir uma cabana de pedra nos locais das suas plantações. Um ano mais tarde tinha-o feito.
Em 1935, uma verdadeira delegação administrativa veio examinar a «floresta natural». Havia uma alta figura dos serviços de Águas e Florestas, um deputado, vários técnicos. Pronunciaram-se muitas palavras inúteis. Decidiu-se que se iria fazer qualquer coisa e, felizmente, não se fez nada senão a única coisa útil: pôr a floresta sob salvaguarda do Estado e interditar que se fizesse carvão. Porque era impossível não ser subjugado pela beleza destas jovens árvores em pleno crescimento. E até no deputado ela exerceu o seu poder de sedução.
Eu tinha um amigo entre os representantes dos serviços florestais que foram na delegação. Expliquei-lhe o mistério. Um dia, na semana seguinte, fomos ambos à procura de Elzéard Bouffier. Encontrámo-lo em pleno trabalho, a vinte kilómetros de onde a inspecção tinha estado. Este guarda-florestal era meu amigo por alguma razão. Conhecia o valor das coisas. Soube permanecer silencioso. Ofereci os ovos que tinha levado de presente. Partilhámos o lanche entre os três e algumas horas passaram na contemplação muda da paisagem.
A encosta de onde vínhamos estava coberta de árvores com seis a sete metros de altura. Lembrei-me do aspecto do campo em 1913: o deserto... o trabalho pacífico e continuado, o ar vivo da altitude, a frugalidade e sobretudo a serenidade da alma, tinham dado a este velho uma santidade quase solene. Era um atleta de Deus. Perguntei-me quantos hectares ele iria cobrir ainda de árvores.
Antes de partir, o meu amigo fez simplesmente uma breve sugestão acerca de certas espécies às quais o terreno onde estávamos parecia convir. Mas não insistiu. «Por uma boa razão, disse-me ele mais tarde, pois este homem sabe mais do que eu.» Ao fim de uma hora de marcha - a ideia tinha feito o caminho com ele - acrescentou: «Ele sabe mais que qualquer pessoa. Encontrou um meio de ser feliz!»
Foi graças a este meu amigo que não só a floresta, mas a felicidade deste homem foram protegidas. Fez nomear três guardas florestais para sua protecção e aterrorizou-os de tal modo que eles foram sempre insensíveis a todas as garrafas de vinho que os madeireiros pudessem propor.
A obra só correu um risco grave durante a guerra de 1939. Os automóveis circulavam a gasogénio, e não havia matas que chegassem - Começaram a fazer-se cortes nos carvalhos de 1910, mas esta zona era tão longe das estradas circuláveis que a empresa se revelou um desastre financeiro. Foi abandonada. O pastor já nada viu. Estava a trinta quilómetros dali, continuando pacificamente o seu trabalho, ignorando a guerra de 39 como tinha ignorado a de 14.
Vi Elzéard Bouffier pela última vez em Junho de 1945. Tinha na altura oitenta e sete anos. Tomei de novo a estrada do deserto, mas agora, apesar da devastação em que a guerra tinha deixado o país, havia um carro que fazia o serviço entre o vale do Durance e a montanha. Achei que tinha sido este meio de transporte relativamente rápido que me tinha impedido de reconhecer os locais dos meus antigos passeios. Também me pareceu que o itinerário tinha passado por locais novos. Precisei de um nome de uma aldeia para concluir que estava mesmo nesta região outrora tão arruinada e desolada. O carro deixou-me em Vergons.
Em 1913, este casal de dez ou doze habitações tinha três habitantes. Eram selvagens, detestavam-se, viviam da caça com armadilhas: um pouco no estado físico e moral dos homens da pré-história. As urtigas cresciam em volta das casas abandonadas. A sua condição era de desespero. Só lhes faltava esperar a morte: situação que não dispõe à virtude.
Tudo estava mudado. O próprio ar. Em lugar do vento seco e brutal que me tinha acolhido nesse tempo, soprava uma brisa suave carregada de aromas. Um ruído semelhante ao da água descia das alturas: era o do vento na floresta. Enfim, a coisa mais espantosa, foi ouvir o verdadeiro barulho da água correndo para uma bacia. Tinham feito uma fonte, e ela era abundante e, aquilo que mais me tocou, tinham plantado ao pé dela uma tília que devia ter quatro anos, já crescida, símbolo incontestável de uma ressurreição.
Além disso, Vergons tinha os traços de trabalho para o qual era necessário esperança. A esperança tinha renascido. Tinham-se limpo as ruínas, deitado abaixo os muros quebrados e reconstruído cinco casas. O casal contava agora com vinte e oito habitantes, e quatro novas famílias. As casas novas, rebocadas de fresco, eram rodeadas de hortas e jardins, misturados mas alinhados, os legumes e as flores, as couves e as roseiras, as pereiras e as bocas-de-lobo, a salsa e as anémonas. Era um lugar onde apetecia morar.
A partir daí, fiz o meu caminho a pé. A guerra de que saíramos com dificuldade não tinha permitido o completo desenvolvimento da vida, mas Lázaro tinha saído do túmulo. Sobre os flancos mais baixos da montanha havia campos de cevada e centeio; ao fundo dos vales estreitos verdejavam prados.
Não foram precisos mais de oito anos para que toda a região resplandecesse de saúde. Sobre as ruínas que eu tinha visto em 1913, elevam-se agora limpas fazendas, que denotam uma vida feliz e confortável. As velhas nascentes, alimentadas pela chuva e pela neve que a floresta retinha, puseram-se de novo a correr. Canalizaram-se as águas. Ao lado de cada quinta, nos bosques de bordos, as bacias das fontes transbordam para tapetes de menta fresca. As aldeias foram reconstruídas pouco a pouco. Uma população vinda das planícies onde a terra se vende cara, fixou-se na região e trouxe juventude, movimento, espírito de aventura. Pelos caminhos, encontram-se homens e mulheres bem nutridos, rapazes e raparigas que sabem rir e retomou-se o gosto das festas camponesas. Se olharmos para a antiga população, irreconhecível desde que vive em abundância e somarmos os recém-chegados, mais de dez mil pessoas devem a sua felicidade a Elzéard Bouffier.
Quando penso que um só homem, reduzido aos mais simples recursos físicos e morais passou, para fazer surgir do deserto esta região de Canaa, acho que apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando eu levo em conta toda a magnanimidade da dedicação abnegada, toda a generosidade para obter tal resultado, sou tomado por um imenso respeito por este velho camponês sem cultura que soube levar a cabo esta obra digna de Deus.
Elzéard Bouffier faleceu pacificamente em 1947 no asilo de Banon.
Subscrever:
Mensagens (Atom)