O antigo Clube de Leitura em Voz Alta deu lugar ao Coro de Leitura em Voz Alta. Tem normalmente um periodicidade quinzenal e acontece na Biblioteca de Alcochete.

Os objectivos continuam a ser os mesmos; promover o prazer da leitura partilhada; a forma passou a ser outra.

próxima sessão | 7 Abril 2015

será o tema


será responsável pelo "Livro do Dia"

mergulho



uma sessão muito concorrida:
membros do CLeVA actual e de anteriores e seus convidados.
Todos dispostos a mergulhar...

Morreu Herberto Helder, o extraordinário poeta. Ficaram connosco as suas palavras.


a Cristina leu de Herberto Helder 
(também para celebrar o Dia Mundial do Teatro)

O actor

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo,
de veado,
de rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura, monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã na sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humanidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo. E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia,
corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é a transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gasifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas.
O actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor,
como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral

O actor em estado geral de graça.


de "Poemas Completos"



a Ana trouxe-nos Livro de Maldições, de Valter Hugo Mãe,
mas a escolha primeira teria sido O filho de mil homens



 a Celina e a Delfina fizeram-se acompanhar por Gonçalo Moreira, João Rodrigues, Mafalda Alegria e Maria Mendes, Guitarristas do Conservatório Regional de Artes do Montijo, que tocaram as peças: «À Luz da Eternidade» - 1.º Andamento de uma suite de Titus Isfan  e »Navegar, Navegar» de Fausto; e leram

Navegar... A-Mar... Mergulhar

Navegar é preciso... viver não é preciso... Navegar é preciso..."

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma...     Fernando Pessoa, “O Infante”

Pus o meu sonho num navio
E o navio em cima do mar
Depois, abri o mar com as mãos
Para o meu sonho,
naufragar.                                   Cecília Meireles, “ Naufrágio”

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.      Alexandre O’ Neil, “Gaivota”

Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
 O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.         Joaquim Pessoa, “Bastava-nos amar”

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu,
Me dessem na despedida
O teu olhar derradeiro,
Esse olhar que era só teu,
Amor que foste o primeiro.   Alexandre O’ Neil, “Gaivota”

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.        Joaquim Pessoa, “Bastava-nos amar”

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada.       José Régio, “Fado Português”

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar
a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.    Joaquim Pessoa, “Bastava-nos amar”

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas
entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.       Cecília Meireles, “ Naufrágio”

Navegar, navegar
Mas ó minha cana verde
Mergulhar no teu corpo
Entre quatro paredes.
Dar-te um beijo e ficar
Ir ao fundo e voltar
Ó minha cana verde
Navegar, navegar …    Fausto Bordalo Dias, “Navegar, Navegar”



a Ana Brandão leu Dá um mergulho no mar, de Tim

Dá um mergulho no mar,
Dá um mergulho sem olhares para trás,
Dá um salto no ar,
Só para veres do que és capaz,
Arrisca mais uma vez,
Nem que seja só por arriscar
Nunca se ter muito a perder,
Dá um mergulho no mar;
Há tantas coisas por fazer,
E tantas por inventar,
Dá um mergulho no mar!

E tu vais ver,
Tu vais jogar,
Tu vais perder,
Tu vais tentar,
Mais uma vez,
E tu vais ver,
E tu vais rir,
Tu vais ganhar!

Tens pouco tempo para ser só teu,
Não esperes nem deixes passar,
Essa vontade que quer - dar um mergulho no mar,
Arrisca mais uma vez,
Nem que seja só por arriscar
Nunca se ter muito a perder,
Dá um mergulho no mar,
Há tantas coisas por fazer,
E tantas por inventar,
Dá um mergulho no mar!

E tu vais ver,
Tu vais jogar,
Tu vais perder,
Tu vais tentar,
Mais uma vez,
(tu vais jogar)
E tu vais ver,
(tu vais gostar)
Tu vais chorar,
E tu vais rir,
Dá um mergulho no mar!

Há-de chegar o dia,
Em que vais querer parar,
Até chegar esse dia,
Quero-te ver a saltar!

E tu vais ver,
Tu vais jogar,
Tu vais perder,
Tu vais tentar,
Mais uma vez,
(tu vais jogar)
E tu vais ver,
(tu vais gostar)
Tu vais chorar,
E tu vais rir,
Dá um mergulho no mar!

Yeah Yeah,
Yeah Yeah, Tu vais jogar,
Yeah Yeah
Yeah Yeah, Tu vais gostar,
Yeah Yeah,
Yeah Yeah, E tu vais rir,

Dá um mergulho no mar!



a Helena e a Maria João leram um excerto de As vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne



o António e a Mariana leram de Fernando Pessoa
O Mostrengo

 O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo,
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse,
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

in Mensagem, 1934



a Ana e a Luísa leram um excerto de O navio branco, de Tchinguiz Aitmatov



o Bernardo, a Maria, a Margarida e a Anabela leram um excerto de Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach 



a Helena leu de Sophia de Mello Breyner Andresen

Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.



a Rosa e a Eugénia leram um excerto de O Planeta Árvore de Cristiano Gamega



a Helena, a Cristina e a Graciete leram Navegar, Navegar, de Fausto
Navegar Navegar

Navegar navegar 
Mas ó minha cana verde 
Mergulhar no teu corpo 
Entre quatro paredes 
Dar-te um beijo e ficar 
Ir ao fundo e voltar 
Ó minha cana verde 
Navegar navegar 

Quem conquista sempre rouba 
Quem cobiça nunca dá 
Quem oprime tiraniza 
Naufraga mil vezes 
Bonita eu sei lá 

Já vou de grilhões nos pés 
Já vou de algemas nas mãos 
De colares ao pescoço 
Perdido e achado 
Vendido em leilão 
Eu fui a mercadoria 
Lá na praça do Mocá 
Quase às avé-marias 
Nos abismos do mar 

navegar navegar... 

Já é tempo de partir 
Adeus morenas de Goa 
Já é tempo de voltar 
Tenho saudades tuas 
Meu amor 
De Lisboa 

Antes que chegue a noite 
Que vem do cabo do mundo 
Tirar vidas à sorte 
Do fraco e do forte 
Do cimo e do fundo 
Trago um jeito bailarino 
Que apesar de tudo baila 
No meu olhar peregrino 
Nos abismos do mar.


a Alexandra e a Cíntia leram Sol da Caparica, de João Pedro Almendra
Sol da Caparica

Descapotável pela ponte o cabelo a voar
o calor abrasador e a pressa de chegar
óculos escuros da rayban e o cantante a partir
a cassete dos ramones para a gente curtir

Aqui vou eu
para a costa
aqui vou eu vou cheio de pica
de Lisboa vou fugir
vou pó sol da caparica

Abancados na esplanada mesmo à beira do mar...
cerveja na mesa para refrescar
ao longo da praia sob o sol de verão...
as miúdas da costa são uma tentação

por isso vou
para a costa
por isso vou cheio de pica
viro costas a Lisboa
vou pó sol da caparica

e assim vamos gozando as ferias de verão...
tenho o sol da caparica mesmo aqui à mão

Aqui vou eu.uhhhhhhh
aqui vou eu..uhhhhhhhh

de Lisboa vou fugir...vou pó Sol da Caparica



a Gabriela leu um excerto de Debaixo de algum céu, de Nuno Camarneiro


a Madalena e o Renato leram Camila vai à praia, de Aline de Petigny e Nancy Delvaux

o Renato e o Luís leram Navio naufragado de Sophia de Mello Breyner Andresen
Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.




o António e a Adília leram Celebrações, de Herberto Helder


a Ana Maria e a Vitória leram excertos de Diário de Anne Frank



a Virgínia leu um excerto de Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez


a Ilda e a Ana Maria leram O acto poético de Eugénio de Andrade
O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência. 

 in Rosto Precário



o Paulo leu Mar adentro, de Ramon Sampedro



Mar adentro

Mar adentro, mar adentro,
y en la ingravidez del fondo,
donde se cumplen los sueños,
se juntan dos voluntades
para cumplir un deseo.

Un beso enciende la vida
con un relámpago y un trueno,
y en una metamorfosis
mi cuerpo no es ya mi cuerpo;
es como penetrar al centro del universo.

El abrazo más pueril,
y el más puro de los besos,
hasta vernos reducidos
en un único deseo.

Tu mirada y mi mirada
como un eco repitiendo, sin palabras:
más adentro, más adentro...
hasta el más allá del todo
por la sangre y por los huesos.

Pero me despierto siempre
y siempre quiero estar muerto,
para seguir con mi boca
enredada en tus cabellos.


a Antónia leu Quando acordei e senti...de Karla Fabricya


a Maria Teresa e o Tomás leram Anfibiologia, de Mário-Henrique Leiria
Anfibiologia

Ainda conseguiu voltar à superfície e pôr outra vez a
cabeça fora de água.

Então deram-lhe mais uma bordoada com a pá do remo,
sólida e certeira, bem no alto da cabeça.

Ao mergulhar definitivamente, engolindo água e sentindo-se ir para o fundo, teve um último pensamento lúcido: «que felizes devem ser os anfíbios!»


in Novos Contos do Gin



a Antónia leu Mar sonoro, de Sophia de Mello Breyner Andresen
Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que suponho
Seres um milagre criado só para mim.

 in Dia do Mar, Obra poética I
 

próxima sessão | 24 Março 2015

será o tema

ATENÇÃO: as leituras deverão, preferencialmente,  ser feitas em grupo



será responsável pelo "Livro do Dia"

dentes



a Cristina falou de "poesia e leitura em voz alta" através da leitura de um excerto de uma
conferência de Jorge Luis Borges de 1977 no Coliseo de Buenos Aires, sobre a "Divina Comédia"


e foi a própria Cristina que começou as leituras sobre o tema do dia; "Dentes"

de Mário Cesariny


Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

de "Nobilíssima Visão"



a Maria João leu "Dentes e miúdos" de  José Jorge Letria


a Maria leu um poema de "Cântico dos Cânticos"


o Tomás leu de Carlos de Oliveira
Dentes

Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?

Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.

Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.

de "Pastoral"

a Maria Teresa leu de Ana Hatherly
Esta Gente / Essa Gente

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

de "Um Calculador de Improbabilidades"

o Luís leu de António Gedeão
Poema da malta das naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
Com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.


de "Obra Completa"



o Renato leu de Eugénio de Andrade
Litania

O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;

o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro feito de água;
a boca sossegada onde apetece

navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor de um fruto, o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;

são a grande razão, a única razão.

de  "As Palavras Interditas Até Amanhã"


a Virgínia leu "Poema dos dentes lavados" de Conceição Areias



a Ana Maria leu de Pablo Neruda
Tenho fome da tua boca

Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.

Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.

de "Cem Sonetos de Amor"


a Ilda leu de Reinaldo Ferreira
Se eu nunca disse

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.

de "Um voo cego a nada"


a Celina leu de Mendes de Carvalho
Arte de bem Comer

Há quem coma com todo o requinte
quem coma entornado no prato
Os que comem sempre a mesma coisa
Há quem viva só para comer
ou coma para aguentar os ossos
quem roa os ossos quem roa as unhas
quem coma sempre no dia seguinte
quem engula depressa devagar
quem coma de pé sentado deitado
Os que mastigam com a boca aberta
e os que não podem abrir a boca
Há quem coma bicos de papagaio
quem coma aquilo que não quer
quem coma sonhos e coma flores
quem coma água e palite os dentes
quem tenha mais olhos que barriga
ou tanta barriga que ande de cor
quem coma tudo quem não coma nada
quem coma difícil com dentes postiços
e quem tenha dentes e não tenha nozes
quem coma no ritz quem coma porrada

Não se deve viver sem mastigar

Nas várias maneiras de bem ou mal comer
a arte maior é comer e calar.

da colectânea "Cem poemas portugueses do riso e do maldizer"


a Teresa leu de Matheus José Mineiro
Ruminando horizontes e sensações

quando aquela cabra terminar de mastigar a linha do horizonte;
de mastigar a costela deste pasto, que é o mundo,
descerá do barranco e deixará de ruminar capim gordura
e aridez do azul por um minuto
para ruminar nossas expectativas,
neurônio
por
neurônio.
enquanto prossegue a cidade,
esta ferida aberta com martelo demolidor;
a cidade,
6 gansos gritando no quintal do seu crânio

e uma joaninha atravessa sossegadamente o engarrafamento
mastiga a folhagem das palavras
cruza o mapa e a perturbação metálica da metrópole
esta pressa embutida na região da nuca da gente
como armário  de cozinha,
com o aço corroído.



Para o coração indico

Com todo seu maquinário  e massagem

Uma empresa de demolição e outra empresa que fure poços artesianos…


a Alexandra disse
Segura a Primavera entre os dentes

de "Anónimo"


a Margarida leu "Os dentes" de Bastos Tigre



a Luísa leu um excerto do Canto V (estrofes 37 à 39), de "Os Lusíadas" de Luís de Camões
(...)

Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d' outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?

Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.

(...)


o Fernando leu de Jorge de Sena
X

Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;

torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem
de hirsutas liras, longas e vazias

da crepitante música tangida,
húmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflada ponta penetrante trila;

dedos e nádegas, e pernas, dentes.
Assim no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.

de "Jorge de Sena por Eugénio Lisboa"


a Margarida apresentou o livro "A sombra do vento" de Carlos Ruiz Zafón