[Todos]
Um carnaval
Alexandre O´Neill
[Vem ao baile
Vem ao baile
Vem ao baile
Vem ao baile
Vem ao baile]
Vem ao baile
Vem ao baile
Pelo braço
ou pelo nariz
Vem ao baile
Vem ao baile
E vais ver como te ris
[E vais ver como te ris
E vais ver como te ris]
Deixa a tristeza roer
As unhas de desespero
Deixa a verdade e o erro
Deixa tudo
vem beber
Vem ao baile das palavras
que se beijam
desenlaçam
Palavras que ficam
passam
Como a chuva nas vidraças
Vem ao baile
oh tens de vir
E perder-te nos espelhos
[Vem ao baile
oh tens de vir
E perder-te nos espelhos]
Há outros muito mais velhos
Que ainda sabem sorrir
Vem ao baile[, vem ao baile, vem ao baile] da loucura
Vem desfazer-te do corpo
E quando caíres de borco[, borco, borco, borco, borco]
A tua alma é mais pura
Vem ao baile
vem ao baile
Pelo chão ou pelo ar
Vem ao baile
baile baile
E vais ver o que é bailar.
|
Ana Rita: Mãezinha (António Gedeão) e Alexandra J: Testamento (Ana Luisa Amaral) |
[Ana Rita]
Mãezinha
António Gedeão
A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.
Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.
28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos...
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)
Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.
Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.
Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.
Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.
A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.
[Alexandra J.]
Testamento
Ana Luísa Amaral
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
|
Paula: Rondel do Alentejo (Almada Negreiros) |
[Paula]
Rondel do Alentejo
José de Almada Negreiros
Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.
Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.
Olhos caros
de Morgada
enfeitada
com preparos
de luar.
Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são as fitas
desafogo
de luar.
Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.
Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.
Giram pés
giram passos
girassóis
e os bonés
e os braços
destes dois
giram laços
ao luar.
O colete
desta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem de luar.
Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete de luar.
[Helena P.]
Monólogo de uma actriz enquanto se maquilha
Bertolt Brecht
Vou fazer o papel de uma bêbeda
Que vende os filhos
Em Paris, nos tempos da Comuna.
Tenho apenas cinco réplicas.
E preciso de me deslocar, de subir a rua.
Caminharei como gente livre
Gente que só o álcool
Quis libertar e voltar-me-ei
Como o bêbado que receia
Ser perseguido. Voltar-me-ei
Para o público.
Analisei as minhas cinco réplicas como os documentos
Que se lavam com ácido para descobrir sob os caracteres visíveis
Outros possíveis caracteres.
Pronunciarei cada réplica
Como a melhor acusação
Contra mim e contra todos os que me olham.
Se eu não reflectisse maquilhar-me-ia simplesmente
Como uma velha beberrona
Doente e decadente.
Mas vou entrar em cena
Como uma bela mulher que guarda a marca da destruição
Na pálida pele outrora macia e agora cheia de rugas
Outrora atraente e agora repelida
Para que ao vê-la cada um se interrogue: quem
Fez isto?
[Todas as mulheres]
Calçada de Carriche
António Gedeão
Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
[Paulo]
Os amantes sem dinheiro
Eugénio de Andrade
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
[Mariana]
Soneto
Luís de Camões
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida
começa de servir outros sete anos,
dizendo:”Mais servira se não fora
para tão longo amor tão curta a vida!”
|
António: Caranguejola (Mário de Sá-Carneiro) |
|
[António]
Caranguejola
Mário de Sá-Carneiro
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
[Alexandra F.]
Todos os homens são maricas quando estão com gripe (pasodoble)
António Lobo Antunes
Pachos na testa
terço na mão
uma botija
chá de limão
zaragatoas
vinho com mel
três aspirinas
creme na pele
grito de medo
chamo a mulher -
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer
mede-me a febre
olha-me a goela
cala os miúdos
fecha a janela
não quero canja
nem a salada
ai Lurdes Lurdes
não vales nada
se tu sonhasses
como me sinto
já vejo a morte
nunca te minto
já vejo o inferno
chamas diabos
anjos estranhos
cornos e rabos
vejo os demónios
nas suas danças
tigres sem listras
bodes de tranças
choros de coruja
risos de grilo
ai Lurdes Lurdes
que foi aquilo
não é a chuva
no meu-postigo
ai Lurdes Lurdes
fica comigo
não é o-vento
a cirandar
nem são as vozes
que vêm do mar
não é o pingo
de uma torneira
põe-me a santinha
à cabeceira
compõe-me a colcha
fala ao prior
pousa o Jesus
no cobertor
chama o doutor
passa a chamada
ai Lurdes Lurdes
nem dás por nada
faz-me tisanas
e pão de ló
não te levantes
que fico só
aqui sozinho
a apodrecer
ai Lurdes Lurdes
que vou morrer.
[Helena M.]
Bairro Livre
Jacques Prévert
Meti o bivaque na gaiola
e saí com um pássaro na cabeça
Então não se faz a continência
perguntou o comandante
Não
não se faz a continência
respondeu o pássaro
Ah bom
desculpe julgava que se fazia a continência
disse o comandante
Ora essa toda a gente se pode enganar
disse o pássaro
[Carlos Morgado]
Pastelaria
Mário Cesariny
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
[Augusto]
Tenho uma grande constipação
Álvaro de Campos
Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez du peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e de aspirina.
[Todos os homens]
Sentenças delirantes de um poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes
Alexandre O'Neill
1
Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato
a sua marcha
e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.
E com os botões.
2
Não te candidates, nem te demitas.
Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.
3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.
Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.
4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver.
Se houver, melhor...
Esta deve ser a tua filosofia.
5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.
Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.
6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
É provável que te sintas logo muito melhor.
Sai, então, de baixo da pedra.
7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.
Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.
8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!
9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.
10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem de tua criação,
nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.
11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.
[Fernando]
Janelas
João Cabral de Melo Neto
há um homem fugindo
de uma árvore; outro que perdeu
seu barco ou seu chapéu;
há um homem que é soldado;
outro que faz de avião;
outro que vai esquecendo
sua hora seu mistério
seu medo da palavra véu;
e em forma de navio
há ainda um que adormeceu.
[Mila]
Diálogo com a figura do profeta Jeremias, pintada por Miguel Ângelo no tecto da capela sistina
Ruy Belo
Pensa tens que pensar bastante Jeremias
sobre ti pesa o peso de pensar por nós que não pensamos
por nós que temos horas para tudo o que pensar não seja
que temos o emprego as lojas os cinemas o relógio
que com suor pagamos pelo tempo todo nosso
o preço duma vida inteiramente submetida
às botas dos senhores deste mundo
pensa tu Jeremias que talvez resolvas tu
problemas até hoje pouco menos que insolúveis
redutíveis talvez a pequenas palavras como pão
ou casa ou roupa simples condição pra conseguir
que o homem possa estar sobreviver
sobre esta terra sólida passível no entanto
de submissão ao sedutor encanto
de fantasmas talvez manipulados longos séculos
Depois procura que não mais o homem
que pouco tempo vive neste único mundo
veja fugir o poder de pensar
pois mais que privilégio é um fardo pensar
Que ao homem se consinta defender a sua vida
de quem mais que matá-lo claramente e duma vez
a vida lhe retira ambiguamente
Que possa ver a pedra a terra a estrela
o animal a árvore a sucessão das estações
o dia a noite o pôr do sol
Que viva muito mais por saber ler
por poder descobrir noutras pegadas anteriores às suas
passado para os passos que lhe cabe dar
na terra e no momento em que tem de viver
(...)
Pensa sem transcendência pensa apenas
deita contas à vida lembra a noite
que desce sobre nós veladamente
(...)
|
João: Inventário (Miguel Torga) |
[João]
Inventário
Miguel Torga
E, apesar de tudo, sou ainda o Homem!
Um bípede com fala e sentimentos.
Ao cabo de misérias e tormentos,
Continua
A ser a minha imagem que flutua
Na podridão dos charcos luarentos.
Sou eu ainda a grande maravilha
Que se mostra no mundo.
O negro abismo que tem lá no fundo
Um regato a correr:
Uma risca de céu e de frescura
Que murmura
A ver se alguma boca a quer beber.
Quanto o grave silêncio da paisagem
Me renega e protesta,
Pouco importa na festa
Deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
Eu é que fui capaz
De fazer o que fiz!
Podia ser melhor o meu destino:
Ter o sol mais aberto em cada mão...
Mas, Adão,
Dei o que a argila deu.
E, corpo e alma da degradação,
O milagre é que o Homem não morreu!
Não! Não me queiram na cova que não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
Me levanto!
|
Cecília: Traduzir-se (Ferreira Gullar) |
[Cecília]
Traduzir-se
Ferreira Gullar
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
|
miau... |
|
Helena R.: Uma prosa sobre os meus gatos (Manuel António Pina) |
[Helena R.]
Uma prosa sobre os meus gatos
Manuel António Pina
Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.
|
Daniel: A sementinha e a flor (Lília da Fonseca); Teresa: Maracujá (Ernesto Lara Filho) |
[Daniel]
A sementinha e a flor
Lília da Fonseca
O Vento
agarrou na sementinha
e levou-a
para uma terra lavrada
As Nuvens
choraram de madrugada
O Sol
em dias a fio
tudo beijou com amor
E numa tarde de estio
transformada em bela planta
a sementinha deu flor.
[Teresa]
Maracujá
Ernesto Lara Filho
Um dia
o pé de maracujá
que eu plantei no quintal
cresceu e floriu.
Eu nunca tinha visto
a flor do maracujá.
Juro por Deus que nunca vi
coisa mais linda no mundo
do que a flor violeta
do pé de maracujá
que eu plantei
na cerca do meu quintal.
Um dia
o maracujá
que eu plantei no meu quintal
cresceu
e floriu...
[Virgínia]
Ode à crítica
Pablo Neruda
Escrevi cinco versos:
um verde,
outro era um pão redondo,
o terceiro uma casa a levantar-se,
o quarto era um anel,
o quinto verso era
breve como um relâmpago
e ao escrevê-lo
deixou em mim a sua queimadura.
E então, os homens
e as mulheres,
vieram e tomaram
a singela matéria,
fibra, vento, fulgor, barro, madeira
e com tão pouca coisa
construíram
paredes, andares, sonhos.
Numa linha da minha poesia
secaram roupa ao vento.
Comeram
minhas palavras,
guardaram-nas
junto à cabeceira,
viveram com um verso,
com a luz que saía do meu flanco.
Então,
veio um critico mudo,
outro cheio de línguas,
e outros, outros chegaram
cegos ou cheios de olhos,
elegantes alguns
como cravos de sapatos rubros,
outros estritamente
vestidos de cadáveres,
alguns partidários
do rei e da sua alta monarquia,
outros tinham-se
enredado na fronte
de Marx e esperneavam na sua barba,
outros eram ingleses,
simplesmente ingleses,
e entre todos
lançaram-se
com dentes e com facas,
com dicionários e outras armas negras,
com respeitáveis citações,
lançaram-se
a disputar a minha pobre poesia
aos homens simples
que a amavam:
e fizeram-na em funis,
enrolaram-na,
prenderam-na com cem alfinetes,
cobriram-na com poeira de esqueleto,
encheram-na de tinta,
cuspiram-lhe com suave
cortesia de gatos,
destinaram-na a embrulhar relógios,
protegeram-na e condenaram-na,
lançaram-lhe petróleo,
dedicaram-lhe húmidos tratados,
cozeram-na com leite,
juntaram-lhe pedras pequeninas,
apagaram-lhe vogais,
foram-lhe matando
sílabas e suspiros,
dobraram-na e fizeram
um pequeno pacote
que destinaram cuidadosamente
aos seus esconsos, aos seus cemitérios.
Depois
retiraram-se um a um
enfurecidos até à loucura
porque não fui bastante
popular para eles
ou impregnados de suave menosprezo
pela minha vulgar falta de trevas,
retiraram-se
todos
e então,
outra vez,
junto à minha poesia
voltaram a viver
homens e mulheres,
de novo
acenderam o lume,
construíram casas,
comeram o pão,
repartiram a luz
e no amor uniram
relâmpago e anel.
E agora
perdoai-me, senhores,
que interrompa esta história
que estou a contar-lhes
e vá viver
para sempre
com a gente simples.
[BÊ-A-BÁ...]
[Cristina]
Arte Poética V
Sophia de Mello Breyner Andresen
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
|
Cristina: O menino azul (Cecília Meireles) |
|
[
in memoriam Isabel]
O Menino Azul
Cecília Meireles
O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores,
- de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho
que saiba inventar histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Ruas das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)