a Cristina falou de "poesia e leitura em voz alta" através da leitura de um excerto de uma conferência de Jorge Luis Borges de 1977 no Coliseo de Buenos Aires, sobre a "Divina Comédia" |
e foi a própria Cristina que começou as leituras sobre o tema do dia; "Dentes"
de Mário Cesariny |
Pastelaria
Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
de "Nobilíssima Visão"
a Maria João leu "Dentes e miúdos" de José Jorge Letria |
a Maria leu um poema de "Cântico dos Cânticos" |
o Tomás leu de Carlos de Oliveira |
Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?
Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.
Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.
de "Pastoral"
a Maria Teresa leu de Ana Hatherly |
O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente
Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente
Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente
Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente
O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente
Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente
NENHUMA!
A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente
de "Um Calculador de Improbabilidades"
o Luís leu de António Gedeão |
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo,
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.
Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.
Com a mão esquerda benzi-me,
Com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
de "Obra Completa"
o Renato leu de Eugénio de Andrade |
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor de um fruto, o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;
são a grande razão, a única razão.
de "As Palavras Interditas Até Amanhã"
a Virgínia leu "Poema dos dentes lavados" de Conceição Areias |
a Ana Maria leu de Pablo Neruda |
Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.
Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.
Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas
e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.
de "Cem Sonetos de Amor"
a Ilda leu de Reinaldo Ferreira |
Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.
de "Um voo cego a nada"
a Celina leu de Mendes de Carvalho |
Há quem coma com todo o requinte
quem coma entornado no prato
Os que comem sempre a mesma coisa
Há quem viva só para comer
ou coma para aguentar os ossos
quem roa os ossos quem roa as unhas
quem coma sempre no dia seguinte
quem engula depressa devagar
quem coma de pé sentado deitado
Os que mastigam com a boca aberta
e os que não podem abrir a boca
Há quem coma bicos de papagaio
quem coma aquilo que não quer
quem coma sonhos e coma flores
quem coma água e palite os dentes
quem tenha mais olhos que barriga
ou tanta barriga que ande de cor
quem coma tudo quem não coma nada
quem coma difícil com dentes postiços
e quem tenha dentes e não tenha nozes
quem coma no ritz quem coma porrada
Não se deve viver sem mastigar
Nas várias maneiras de bem ou mal comer
a arte maior é comer e calar.
da colectânea "Cem poemas portugueses do riso e do maldizer"
a Teresa leu de Matheus José Mineiro |
quando aquela cabra terminar de mastigar a linha do horizonte;
de mastigar a costela deste pasto, que é o mundo,
descerá do barranco e deixará de ruminar capim gordura
e aridez do azul por um minuto
para ruminar nossas expectativas,
neurônio
por
neurônio.
enquanto prossegue a cidade,
esta ferida aberta com martelo demolidor;
a cidade,
6 gansos gritando no quintal do seu crânio
e uma joaninha atravessa sossegadamente o engarrafamento
mastiga a folhagem das palavras
cruza o mapa e a perturbação metálica da metrópole
esta pressa embutida na região da nuca da gente
como armário de cozinha,
com o aço corroído.
Para o coração indico
Com todo seu maquinário e massagem
Uma empresa de demolição e outra empresa que fure poços artesianos…
a Alexandra disse |
de "Anónimo"
a Margarida leu "Os dentes" de Bastos Tigre |
a Luísa leu um excerto do Canto V (estrofes 37 à 39), de "Os Lusíadas" de Luís de Camões |
Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d' outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?
Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
(...)
o Fernando leu de Jorge de Sena |
Rígidos seios de redondas, brancas,
frágeis e frescas inserções macias,
cinturas, coxas rodeando as ancas
em que se esconde o corredor dos dias;
torsos de finas, penugentas, frias,
enxutas linhas que nos rins se prendem,
sexos, testículos, que inertes pendem
de hirsutas liras, longas e vazias
da crepitante música tangida,
húmida e tersa, na sangrenta lida
que a inflada ponta penetrante trila;
dedos e nádegas, e pernas, dentes.
Assim no jeito infiel de adolescentes,
a carne espera, incerta, mas tranquila.
de "Jorge de Sena por Eugénio Lisboa"
a Margarida apresentou o livro "A sombra do vento" de Carlos Ruiz Zafón |
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