Antes de entrarmos no tema da sessão falámos de outras leituras em voz alta
- nasceu outro clube de leitura em voz alta, chama-se "Leituras da Escola Comunitária de Alcochete". Eis um resumo fotográfico de uma das sessões: |
- voltámos a falar da "Leitura Furiosa" deste ano |
a Cristina falou-nos do Cancioneiro Infanto-Juvenil do Instituto Piaget. |
a Cristina falou-nos ainda de "Infância roubada", uma antologia de textos de autores portugueses que falam da sua infância, numa organização de Matilde Rosa Araújo
e leu deste mesmo livro: |
ficou da infância a febre
ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas
podes chamar-lhe versos
são viagens
ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento
podes chamar-lhe versos
são pedradas
vamos brincar?
a Celina leu um excerto de «Num meio dia de fim de primavera» de Alberto Caeiro |
e a Maria leu-nos o excerto que faltava deste mesmo poema |
o Fernando leu, com a ajuda de todos |
Pois pois
O Padre António Vieira pregava de encostar as orelhas na boca do bárbaro.
Que para ouvir as vozes do chão
Que para ouvir a fala das águas
Que para ouvir o silêncio das pedras
Que para ouvir o crescimento das árvores
E as origens do Ser. Pois Pois.
Bernardo da Mata nunca fez outra coisa
Que ouvir as vozes do chão
Que ouvir o perfume das cores
Que ver o silêncio das formas
E o formato dos campos. Pois Pois.
Passei muitos anos a rabiscar, neste caderno, os escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para poeta
O livro de Bernardo
1
Os meninos me letram de Bandarra.
(Bandarra é cavalo velho solto
no pasto, às moscas.)
Esse é meu estandarte.
2
Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos – issos.
3
Dentro de mim
eu me eremito
como os padres do ermo.
4
Meus caminhos
a garça
redime.
5
Sou aquele
que gastou a sua história
na beira de um rio.
6
Estes brejos amanhecem
amarrados
de conchas.
7
A voz dos sapos de tarde
é destroncada
por dentro.
8
O sol transborda
nas estradas
e no olhar das sariemas.
9
Ao lado de uma lara
de uma pedra
estou conforme.
10
Passarinhos do mato
gostam de mim
e de goiaba.
11
Cavalos entardecem
na beira do mato –
onde entardeço.
12
Uma rã me benzeu
com as mãos
na água.
13
Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade.
14
Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.
15
O silêncio
está úmido
de aves.
16
Registros de lagartixas
nas ruínas:
elas têm sabimentos de pedras.
17
Vi o verão
no meio das pedras
e um lagarto.
18
A chuva
azula a voz
das andorinhas
19
Eternidade
é palavra
encostada em
Deus.
20
Águas que sabem
a pedras
sabem a rãs.
21
Sapos sabem divinamentos
mais do que as árvores
mais do que os homens.
22
O sangue do sol
nas águas
atrai mariposas.
23
Sou livre
para o silêncio das formas
e das cores.
24
Caracóis
não gosmam
em latas.
25
Ocupo função de exílio
quando anoitece
nas águas.
26
Passam formigas perdidas
no lado esquerdo
da casa.
27
No olho songo
do lagarto
nasce um pedaço de nuvem.
28
O corpo do rio prateia
quando a lua
se abre.
29
Na beira da mosca
o céu parou
o dia parou.
30
O dia estava
em condições de boca
para as borboletas.
31
O lírio
e as garças
são imaculantes.
32
Sou beato de águas
de pedras
e de aves.
33
De tarde
cigarras
arrebentavam o verão.
34
Dentro dos caramujos –
há silêncios
remontados.
35
Quem ornamenta o azul
das manhãs
são os sabiás.
36
Estou pousado em mim
igual que formiga
sem rumo.
37
Com fios de orvalho
aranhas tecem
a madrugada.
38
Eu vi que a noite dormia
escorada
nos arvoredos.
39
Andorinhas passeiam
na chuva
e no meu ocaso.
40
Quase vestida de sol
vi a chuva
em cima do morro.
41
Palavras
Gosto de brincar com elas
Tenho preguiça de ser sério.
42
Tenho candor
por bobagens
Quando eu crescer eu vou ficar criança.
43
Bom é
constar das paisagens
como um rio, uma pedra.
44
Meu requinte
é chegar às vilezas
com castidade.
45
Passarinho
faz árvore de tarde
nos andarilhos.
46
Poeta
é uma pessoa
que reverdece nele mesmo.
47
Reconhecer a eminência
dos insetos
leva à sabedoria.
48
Pelo corpo
das latas podres
relvam rosas.
49
As garças
quando alçam
se entardecem.
50
Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo.
51
Preciso de alcançar
a indulgência
pedral.
52
Uma açucena
me convidou
para de noite.
a Luísa leu um excerto de «A língua posta a salvo», de Elias Canetti |
o Renato leu «Ser criança» de Madalena e um excerto de «O Deus das Moscas», de William Golding |
a Margarida e a Virgínia leram, de Alice Gomes "Na idade dos porquês" |
Na idade dos porquês
Professor diz-me porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?
Professor diz-me porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
E roda gira rodopia
e cai morto no chão...
Tenho nove anos professor
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!
Tu falas falas professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
Fazes-me decorar.
É a luta professor
a luta em vez de amor.
Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.
Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.
Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...
E quando tu depois vens definir
o que são conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tanta mais definições...
o meu coração
o meu coração que não sei como é feito
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.
a Teresa leu um excerto do conto «A volta por cima», de Fernando Sabino |
o Tomás e a Maria Teresa leram «O dromedário descontente», de Jacques Prévert |
O dromedário descontente
Era uma vez um jovem dromedário que não estava nada contente. Na véspera, dissera ele aos amigos: “Amanhã vou sair com o meu pai e com a minha mãe, vamos ouvir uma conferência, ora vejam!” Os outros tinham dito: “Olha, olha, ele vai ouvir uma conferência, que maravilha”. Não pregara olho toda a noite, tal era a sua impaciência. E agora não estava contente porque a conferência não era nada do que imaginara: não tinha música e era uma decepção, estava aborrecidíssimo e com vontade de chorar. Havia uma hora e três quartos que um senhor gordo falava. Diante do senhor gordo havia um jarro de água e um copo de dentes sem escova. De tempos a tempos, o senhor deitava água no copo mas nunca lavava os dentes e, visivelmente irritado, falava de outra coisa, isto é, dos dromedários e dos camelos. O jovem dromedário estava cheio de calor e, além disso, a bossa incomodava-o muito porque roçava nas costas da cadeira. Estava muito mal sentado, mexia-se e remexia-se. Então, a mãe dizia-lhe: “Está quieto, deixa falar o senhor”, e dava-lhe beliscões na bossa. O jovem dromedário tinha cada vez mais vontade de chorar, de se ir embora… De cinco em cinco minutos o conferencista repetia: “Sobretudo, há que não confundir os dromedários com os camelos. Chamo a vossa atenção, minha senhoras, meus senhores e caros dromedários, para este facto: o camelo tem duas bossas, mas o dromedário só tem uma!” Todas as pessoas na sala diziam: “Ah, ah, muito interessante”, e os camelos, os dromedários, os homens, as mulheres e as crianças tomavam notas nos seus canhenhos.
Depois tornava o conferencista: “O que distingue os dois animais é que o dromedário tem só uma bossa, ao passo que, coisa estranha e que é útil conhecer, o camelo tem duas…” Por fim, o jovem dromedário fartou-se e, saltando para o estrado, mordeu o conferencista. “Camelo!”, disse o conferencista furioso. E toda a gente na sala gritava: “Camelo, porco de camelo, porco de camelo!” E, no entanto, era um dromedário, e todo limpinho.
o Luís leu de Ruy Belo |
A criança está completamente imersa na infância
a criança não sabe que há-de fazer da infância
a criança coincide com a infância
a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
deixa cair a cabeça e voga na infância
a criança mergulha na infância como no mar
a infância é o elemento da criança como a água
é o elemento próprio do peixe
a criança não sabe que pertence à terra
a sabedoria da criança é não saber que morre
a criança morre na adolescência
Se foste criança diz-me a cor do teu país
Eu te digo que o meu era da cor do bibe
e tinha o tamanho de um pau de giz
Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Senhor que a minha vida seja permitir a infância
embora nunca mais eu saiba como ela se diz
de 'Homem de Palavra[s]'
a Ilda leu «A história da criança e do desenho», de Rolf Krenzer |
A história da criança e do desenho
Certa vez, uma criança fez um desenho. Demorou muito tempo a terminá-lo e usou todos os lápis de cor que tinha. Depois foi ter com a avó e mostrou-lho.
— O que é isto? — perguntou à avó.
— É um desenho muito bonito e cheio de cor — respondeu a avó.
— Mas o que é? — insistiu.
A avó não soube responder.
A criança foi perguntar ao avô.
— Isto é quase um Picasso — respondeu o avô a rir.
— E o que é "quase um Picasso"? — perguntou a criança.
— Um pintor — foi a resposta do avô.
— Eu também sou um pintor — disse a criança.
De seguida foi ter com a irmã mais velha.
— Usaste mesmo as cores todas! — disse ela.
— Pois foi. Mas o que é isto?
— Uma gatafunhada colorida!
A criança tirou-lhe o desenho e foi ter com o pai que estava à mesa a ler o jornal. A criança pôs o desenho em cima do jornal e não disse nada.
— Oh! — disse o pai. — Mas isto é um arco-íris todo colorido muito bonito! Vai de uma ponta à outra. Vai de mim até ti.
— Exactamente — disse a criança.
Em seguida, a criança e o pai penduraram o desenho precisamente no local onde a luz do sol se reflectia na parede.
a Alexandra leu "João", de Luisa Sobral |
João
Eu saio da escola sempre à mesma hora
Vejo o João que sai também
Já me fiz de distraída, sorri meio atrevida
Mas o João da C finge que não me vê
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
Não sou a mais bonita e nunca sou escolhida
Quando fazem equipas para o futebol
Se alguém fica doente entro para suplente
E fico sentadinha a apanhar sol
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
O João olhar para mim
O João gostar de mim
Ele está a olhar para mim
Vejo o João que sai também
Já me fiz de distraída, sorri meio atrevida
Mas o João da C finge que não me vê
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
Não sou a mais bonita e nunca sou escolhida
Quando fazem equipas para o futebol
Se alguém fica doente entro para suplente
E fico sentadinha a apanhar sol
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
Todas na escola gostam do João
Propõem namorar num papel com sim ou não
Sei que é difícil com tanta escolha assim
Que vai fazer o João gostar de mim?
O João olhar para mim
O João gostar de mim
Ele está a olhar para mim
a Cristina leu de Manoel de Barros |
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
e por fim... |
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