a Cristina começou por ler-nos uma cena de "Fragmentos de um Discurso Amoroso" de Roland Barthes |
o Luís e a Ilda leram algumas quadras de António Aleixo |
O texto resulta de uma "compilação" de quadras soltas do poeta, que foram ordenadas de modo a criar um diálogo entre homem e mulher inserido no tema proposto para a sessão - Amor c/ Humor.
Ao pé de ti fico mudo, (Homem)
Fitando esse teu olhar:
Quando os olhos dizem tudo
Para que há-de a boca falar?!
Fala quanto te apeteça, (Mulher)
Mas desculpa que eu te diga
Que te falta na cabeça
O que te sobra em barriga.
Não sou esperto nem bruto (Homem)
Nem bem nem mal educado
Sou simplesmente o produto
Do meio em que fui criado.
És um rapaz instruído (Mulher)
És um doutor em resumo
És um limão que espremido
Não dá caroço nem sumo.
Eu não sei porque razão (Mulher)
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer.
Deixam-me sempre confuso (Homem)
As tuas palavras boas
Por não te ver fazer uso...
Dessa moral que apregoas.
De te ver fiquei repeso, (Homem)
Em vez de ganhar perdi;
Quis prender-te, fiquei preso,
E não sei se te prendi.
Embora o nosso amor fosse (Mulher)
Doce, tinha que acabar;
O mel por ser muito doce
É que nos faz enjoar.
Para veres o que merecias (Homem)
Quando tu me fazes mal,
Pensa só no que farias
A quem te fizesse tal.
o Renato e a Celina leram um excerto de "As mulheres no Parlamento" de Aristófanes Políticos e mulheres na Comédia Grega |
a Maria Teresa e o Tomás leram de Roald Dahl |
Pensam vocês que sabem
esta história?
Mas a que têm na vossa
memória
É só uma versão
falsificada,
Rosada, tonta e açucarada
Feita para as crianças
inocentes
Não terem medo, ficarem
contentes.
Começou tudo naquele
ponto
Em que as feias irmãs
deste conto
Com seus brincos, colares
e anéis
Partiram para o Baile dos
Reis
Enquanto a pobre Gata
Borralheira
Ficou fechada, só, na
garrafeira
Cheia de ratos, ratinhos,
ratões
Todos às dentadas e
encontrões.
«Ai quem me acode, quem
me vem salvar!»
Num clarão de luz, toda
a brilhar
A Fada Madrinha lhe
apareceu
E disse: «Então, o que
te aconteceu?»
Dando três murros na
porta trancada
Assim se queixou logo a
afilhada:
«Hoje há um baile, que
dá o rei.
Já todos partiram e eu
fiquei.
Quero um vestido, um
coche dourado,
Jóias de ouro, um rico
toucado.
Dançando com sapatos de
cristal
Vou conquistar o Príncipe
Real.
«Espera», disse a Fada
Madrinha
E com mágico toque de
varinha
Fez a Gata Borralheira
aparecer
Lá onde o baile estava a
decorrer.
Ah, como as irmãs se
arrepelaram
Quando na pista de baile
dançaram
O Príncipe e a Gata
Borralheira,
Abraçados de uma tal
maneira
Que o Príncipe até
perdeu a fala
Diante de todos, naquela
sala!
Bateu a meia noite. Ela
exclamou:
«Adeus! Adeus! Adeus,
que já me vou!»
Mas o Príncipe, nada
conformado,
Prendeu-a pelo vestido
bordado.
Ela gritou: «Ai,
deixa-me partir!»
E pelos salões largou a
fugir.
O vestido ficou todo
rasgado.
Correndo à pressa, em
roupa interior,
Um sapato perdeu no
corredor.
O Príncipe saltou como
um leão,
E levou o sapato ao
coração.
«A rapariga a quem ele
servir
É a noiva com quem me
vou unir.
Hei-de correr as casas da
cidade
Até descobrir a minha
beldade!»
Depois, como era muito
despistado,
Deixou-o num caixote,
abandonado.
Então uma das manas
invejosas
(Picada de borbulhas
horrorosas)
Pegou no sapatinho tão
coquete,
Atirou-o para dentro da
retrete.
Em seu lugar,
dissimuladamente,
Pôs o próprio sapato
ainda quente.
As coisas estão-se a
complicar…
A Gata Borralheira irá
ganhar?
Quando nasceu o sol no
outro dia
Às portas já o Príncipe
batia.
A quem seria, ora, a quem
seria
Que o famoso sapato
pertencia?
Era largo e enorme o
sapatão,
Parecia a bota dum
capitão.
Pior ainda, cheirava a
chulé
(Suado e sujo estava o
pé).
Uma bicha de moças se
formou,
O sapato a nenhuma se
moldou.
Até que as irmãs vieram
correndo,
Estendendo a primeira um
pé horrendo.
«Serve-me, é meu»,
gritou a megera,
«Vou casar contigo na
Primavera.»
«Isso é que não
vais!», o jovem gritou
E com o susto quase
desmaiou.
Mas ela guinchava, ela
insistia,
De ser princesa não
desistia.
«Ordeno que lhe cortem a
cabeça!»
Rugiu, cheio de raiva,
Sua Alteza.
E, vendo a rapariga
degolada,
Exclamou: «Fica assim
mais engraçada!»
Para calçar o sapato,
depois
Avançou a Irmã Número
Dois.
«Prova antes o fio da
minha espada!»
O Príncipe, com uma
espadeirada
Cortou-lhe a cabeça que
rolou
Como uma bola até que
parou.
A Gata Borralheira na
cozinha
Fazia bolos de mel e
farinha.
Ouvindo as cabeças
tombar no chão
Sentiu um baque no seu
coração.
Foi à porta espreitar.
«Que aconteceu?»
«Não te metas!», ele
lhe respondeu.
A pobre da Gata
Borralheira
Pôs-se a pensar da
seguinte maneira:
«Casar contigo não
posso admitir
Se cortas cabeças para
te divertir.»
«Quem é a porca que
está na cozinha?»
Ele exclamou «Vou
cortar-lhe a pinha!»
A fada surgiu num branco
clarão,
Aterrou ali, perto do
fogão.
«Formula um desejo,
minha afilhada,
Eu vou ajudar-te, não
custa nada.»
A Gata Borralheira
reflectiu
Com mil cuidados depois
do que viu.
«Ó querida Madrinha, ó
boa Fada,
Vou-lhe pedir coisa
complicada.
Príncipe rico já eu
conheci,
De luxos e jóias já me
servi.
Agora pretendo um marido
honrado
Bom e fiel, sempre a meu
lado.»
A Gata Borralheira de
repente
Viu-se casada com
atraente
Fabricante de marmelada.
Como era doce, doce estar
casada!
Para todo o sempre foram
felizes,
Não sei se tiveram
muitos petizes.
a Maria, a Margarida e a Alexandra leram "A Gata borralheira", de "Histórias tradicionais politicamente correctas", de James Finn Garner |
a Virgínia e a Ana Maria leram um excerto de "Dona Flor e seus dois maridos" de Jorge Amado |
a Teresa leu de Humberto Campos |
O gramático
Alto, magro, com os bigodes grisalhos a desabar,
como ervas selvagens pela face de um abismo, sobre os cantos da funda
boca munida de maus dentes, o professor Arduíno Gonçalves era um
desses homens absorvidos completamente pela gramática. Almoçando
gramática, jantando gramática, ceando gramática, o mundo não
passava, aos seus olhos, de um enorme compêndio gramatical, absurdo
que ele justificava repetindo a famosa frase do Evangelho de João:
— No princípio era o VERBO!
Encapado pela gramática, e às voltas, de manhã
à noite, com os pronomes, com os adjetivos, com as raízes, com o
complicado arsenal que transforma em um mistério a simplicíssima
arte de escrever, o ilustre educador não consagrava uma hora sequer
às coisas do seu lar. Moça e linda, a esposa pedia-lhe, às vezes,
sacudindo-lhe a caspa do paletó esverdeado pelo tempo:
— Arduíno, põe essa gramatiquice de lado.
Presta atenção aos teus filhos, à tua casa, à tua mulher! Isso
não te põe para diante! Curvado sobre a grande mesa carregada de
livros, o cabelo sem trato a cair, como falripas de aniagem, sobre as
orelhas e a cobrir o colarinho da camisa, o notável professor
retirava dos ombros a mão cariciosa da mulher, e pedia-lhe,
indicando a estante:
— Dá-me dali o Adolfo Coelho.
Ou:
— Apanha, aí, nessa prateleira, o Gonçalves
Viana.
Desprezada por esse modo, Dona Ninita não
suportou mais o seu destino: deixou o marido com as suas gramáticas,
com os seus dicionários, com os seus volumes ponteados de traça, e
começou a gozar a vida passeando, dançando e, sobretudo,
palestrando com o seu primo Gaudêncio de Miranda, rapaz que não
conhecia o padre António Vieira, o João de Barros. o frei Luís de
Sousa, o Camões, o padre Manuel Bernardes, mas que sabia, como
ninguém, fazer sorrir as mulheres.
— Ele não prefere, a mim, aquela porção de
alfarrábios que o rodeiam? Então, que se fique com eles!
E passou a adorar o Gaudêncio, que a encantava
com a sua palestra, com o seu bom-humor, com as suas gaiatices, nas
quais não figuravam, jamais, nem Garcia de Rezende, nem Gomes Eanes
de Azurara, nem Rui de Pina, nem Gil Vicente, nem, mesmo, apesar do
seu mundanismo, D. Francisco Manuel de Melo.
Assim viviam, o professor, com seus puristas, e D.
Ninita com o seu primo, quando, de regresso, um dia, ao lar, o
desventurado gramático surpreendeu a mulher nos braços musculosos,
mas sem estilo, de Gaudêncio de Miranda. Ao abrir-se a porta, os
dois culpados empalideceram, horrorizados. E foi com o pavor no
coração que o rapaz se atirou aos pés do esposo traído, pedindo,
súplice, de joelhos:
— Me perdoe, professor!
Grave, austero, sereno, duas rugas profundas
sulcando a testa ampla, o ilustre educador encarou o patife,
trovejando, indignado:
— Corrija o pronome, miserável! Corrija o
pronome!
E, entrando no gabinete, começou, cantarolando, a
manusear os seus clássicos...
o Fernando leu de Russell Edson |
Apaixonara-se pelo estetoscópio do seu médico; a maneira como lhe
escutava o coração...
O médico perguntou-lhe, gostava de uma lua de mel com meu telescópio?
Não faz ideia como ele se expande pela noite dentro à procura do
corpo celestial.
Oh, mas o seu microscópio tem vistas curtas...
Então e o meu periscópio, que tal? Ergue-se no colchão de olhar astuto à procura da porta das traseiras.
Isso é ainda mais nojento que o seu caleidoscópio; a fixar-me com o seu olho ciclópico fracturado.
Até que o médico, acenando-lhe com o estetoscópio, pergunta, a menina está pronta?
Oh, sim, suspira ela...
de "O espelho atormentado"
tradução: Guilherme Mendonça
a Gabriela leu "O paraíso são os outros" de Valter Hugo Mãe com ilustrações de Esgar Acelerado |
a Luísa e a Ana leram "A explicação do amor", adaptação livre de "When love arrives", de Sarah Kay e Phil Kaye |
a Cristina leu excertos de Miguel Esteves Cardoso e Pedro Mexia de "Antologia do Humor Português" |
"A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito importante. Hoje em dia, porém, os rapazes já não correm atrás das raparigas – andam com elas. A diferença entre “correr atrás” e “andar com” é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria, entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os 400 metros barreiras.
Os dois sintomas mais preocupantes desta nova tendência para a letargia erótica são, por um lado, a decadência acelerada do piropo, do galanteio, e por outro, o culto solene e obstinado da sinceridade. Ambos contribuíram para facilitar a sedução, tornando a própria sedução numa coisa muito menos sedutora, já que não há maior afrodisíaco que a dificuldade.
Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o “cool” da contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e local “Bute?”. “Bute” significa qualquer coisa como “Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas”. Mas, como os rapazes só dizem “Bute?”, são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um “Bute” terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?
Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer “Ai, Lena… Quando ele disse “Bute” subiu-me o coração à boca!”. A verdade é que o coração é um órgão bastante precioso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso. De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente “Bute” – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.
A própria palavra piropo (do latim “pyropo”) tem óbvias conotações incendiárias. Alguns alquimistas definiam esta pedra como sendo uma mistura de “três partes de lata e uma de ouro, que fica da cor do fogo”. A lata é extremamente importante – sem ela não se pode construir um bom piropo. Não só basta a parte de ouro (o sentimento, ou desejo) – faltam mesmo os demais 75 por cento. E o piropo faz falta, mesmo que seja só, nos preparos de amor, o “pequeno grão de arroz” de que fala a cantiga…
Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma rapariga bonita. Não é o piropo que procura obter algo em troca – não é o piropo interesseiro do engate – é o piropo per si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida.
Ela é bonita – você gostou de a ver. Em troca, inventa uma coisa bonita para lhe dizer, sem esperar outra recompensa senão a enorme recompensa de saber que ela o ouviu. Qualquer rapariga gosta de (e merece) ouvir um piropo destes. Em contrapartida, nenhuma rapariga tem paciência para as alternativas cada vez mais habituais; o basbaque calado que fica a ver, o engatatão incómodo que marcha atrás da rapariga como um detective pouco particular, o ordinário que se mete, até o banana tímido e ensimesmado que nem sequer se dá ao trabalho de olhar.
É preciso acabar com a escandinavização do erotismo português. Não é só o piropo que morre. São as cartas de amor, as flores de um anónimo admirador, as boas frases de apresentação e toda a panóplia de doces artifícios que deveriam estar sempre presentes na preocupação de um bom rapaz português. A escandinavização (exercício físico, comidas saudáveis, windsurf e sexo sem culpa e sem graça) tem, como fator mais perigoso, o culto à sinceridade. É triste, mas é verdade. Hoje em dia quase ninguém mente! Os rapazes dizem “não és muito bonita, mas até te gramo”, e as raparigas respondem “preferia o Richard Gere, mas já que aqui estás…”.
Isto não pode ser. Para qualquer rapaz, a rapariga com quem está (ou quer estar) não pode ser senão a mais bonita do mundo inteiro. A honestidade é a morte do encantamento. Bem utilizada, a mentira criativa chega ao ponto de convencer o próprio mentidor. Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão (“era capaz de morrer por ti”, por exemplo) é sempre uma contribuição espetacular a favor do “live aid” do coração. A verdade é nua e crua, e nisto parece-se bastante com um bife de peru. As coisas nuas têm de ser misteriosa e lindamente vestidas, e as cruas têm sempre de ser cozinhadas. Ninguém gosta de bife de peru, mas uma vez panadinho com pão ralado, e enfeitado com agriões e rodelas de limão, e servido num prato branco e limpo com um sorriso impecável… Come-se já.
Há uma medida eficaz contra a banalização e simplificação das relações amorosas, mais portuguesa que escandinava, e mais agradável que andar a butes. É namorar. Todas as mulheres – sejam raparigas ou mulheres, esposas de há 20 anos, conhecidas ou desconhecidas, mais ou menos bonitas, não importa – todas elas têm de ser convincentemente, absolutamente e permanentemente namoradas. Se não, não vale a pena – nem para elas nem para eles.
Na rua ou em casa, no trabalho ou no liceu, não deixe que nenhuma rapariga bonita passe por si em vão. Com correcção e jeito, lance-lhe um piropo sentido e desinteressado, e verá como sabe bem. Pense que nunca mais irá vê-la outra vez (o que é quase sempre verdade) e aproveite aquela única oportunidade. Ou, sendo esposa ou namorada, sua ou de outra pessoa, também não fica mal. O amor, pode ter a certeza, tem de estar no ar tanto como no lar.
A propósito, você ficou ainda mais bonita depois de cortar o cabelo."
Os dois sintomas mais preocupantes desta nova tendência para a letargia erótica são, por um lado, a decadência acelerada do piropo, do galanteio, e por outro, o culto solene e obstinado da sinceridade. Ambos contribuíram para facilitar a sedução, tornando a própria sedução numa coisa muito menos sedutora, já que não há maior afrodisíaco que a dificuldade.
Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o “cool” da contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e local “Bute?”. “Bute” significa qualquer coisa como “Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas”. Mas, como os rapazes só dizem “Bute?”, são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e enriquecimento semântico. São assim obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um “Bute” terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?
Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer “Ai, Lena… Quando ele disse “Bute” subiu-me o coração à boca!”. A verdade é que o coração é um órgão bastante precioso e só se dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso. De uma maneira geral, todas as palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente “Bute” – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.
A própria palavra piropo (do latim “pyropo”) tem óbvias conotações incendiárias. Alguns alquimistas definiam esta pedra como sendo uma mistura de “três partes de lata e uma de ouro, que fica da cor do fogo”. A lata é extremamente importante – sem ela não se pode construir um bom piropo. Não só basta a parte de ouro (o sentimento, ou desejo) – faltam mesmo os demais 75 por cento. E o piropo faz falta, mesmo que seja só, nos preparos de amor, o “pequeno grão de arroz” de que fala a cantiga…
Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma rapariga bonita. Não é o piropo que procura obter algo em troca – não é o piropo interesseiro do engate – é o piropo per si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida.
Ela é bonita – você gostou de a ver. Em troca, inventa uma coisa bonita para lhe dizer, sem esperar outra recompensa senão a enorme recompensa de saber que ela o ouviu. Qualquer rapariga gosta de (e merece) ouvir um piropo destes. Em contrapartida, nenhuma rapariga tem paciência para as alternativas cada vez mais habituais; o basbaque calado que fica a ver, o engatatão incómodo que marcha atrás da rapariga como um detective pouco particular, o ordinário que se mete, até o banana tímido e ensimesmado que nem sequer se dá ao trabalho de olhar.
É preciso acabar com a escandinavização do erotismo português. Não é só o piropo que morre. São as cartas de amor, as flores de um anónimo admirador, as boas frases de apresentação e toda a panóplia de doces artifícios que deveriam estar sempre presentes na preocupação de um bom rapaz português. A escandinavização (exercício físico, comidas saudáveis, windsurf e sexo sem culpa e sem graça) tem, como fator mais perigoso, o culto à sinceridade. É triste, mas é verdade. Hoje em dia quase ninguém mente! Os rapazes dizem “não és muito bonita, mas até te gramo”, e as raparigas respondem “preferia o Richard Gere, mas já que aqui estás…”.
Isto não pode ser. Para qualquer rapaz, a rapariga com quem está (ou quer estar) não pode ser senão a mais bonita do mundo inteiro. A honestidade é a morte do encantamento. Bem utilizada, a mentira criativa chega ao ponto de convencer o próprio mentidor. Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão (“era capaz de morrer por ti”, por exemplo) é sempre uma contribuição espetacular a favor do “live aid” do coração. A verdade é nua e crua, e nisto parece-se bastante com um bife de peru. As coisas nuas têm de ser misteriosa e lindamente vestidas, e as cruas têm sempre de ser cozinhadas. Ninguém gosta de bife de peru, mas uma vez panadinho com pão ralado, e enfeitado com agriões e rodelas de limão, e servido num prato branco e limpo com um sorriso impecável… Come-se já.
Há uma medida eficaz contra a banalização e simplificação das relações amorosas, mais portuguesa que escandinava, e mais agradável que andar a butes. É namorar. Todas as mulheres – sejam raparigas ou mulheres, esposas de há 20 anos, conhecidas ou desconhecidas, mais ou menos bonitas, não importa – todas elas têm de ser convincentemente, absolutamente e permanentemente namoradas. Se não, não vale a pena – nem para elas nem para eles.
Na rua ou em casa, no trabalho ou no liceu, não deixe que nenhuma rapariga bonita passe por si em vão. Com correcção e jeito, lance-lhe um piropo sentido e desinteressado, e verá como sabe bem. Pense que nunca mais irá vê-la outra vez (o que é quase sempre verdade) e aproveite aquela única oportunidade. Ou, sendo esposa ou namorada, sua ou de outra pessoa, também não fica mal. O amor, pode ter a certeza, tem de estar no ar tanto como no lar.
A propósito, você ficou ainda mais bonita depois de cortar o cabelo."
Miguel Esteves Cardoso de "A causa das coisas"
Afinal
Porque afinal o que importa
não é o modo como se ama
mas conhecer restaurantes
e ser muito bom na cama.
Pedro Mexia de "Avalanche"
a Alexandra trouxe "Prometo falhar" de Pedro Chagas Freitas |
Antes de "atacarmos" as comidas e as bebidas ainda tivemos tempo para ouvirmos leitura em voz alta, mas desta vez por outras vozes. Pode ser ouvido aqui
uns restos de boleima :) |
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