O antigo Clube de Leitura em Voz Alta deu lugar ao Coro de Leitura em Voz Alta. Tem normalmente um periodicidade quinzenal e acontece na Biblioteca de Alcochete.

Os objectivos continuam a ser os mesmos; promover o prazer da leitura partilhada; a forma passou a ser outra.

11 de Maio - Caminho/Busca (as leituras do dia)

Para preparar a sessão de poesia do Pelourinho, foi um dia de muito trabalho. Mas valeu bem a pena!

As leituras do dia

- A Isabel trouxe Fernando Pessoa / Álvaro de Campos - Todas as cartas de amor são ridículas (excerto)

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

(...)

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

- Com a Mariana, participamos todos. De Luis de Camões, as duas primeiras estrofes de Os Lusíadas

Todos (em ladaínha, a desaparecer)
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,


As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;


E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Todos (forte)
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


- Da Helena chegou Escavação de Mário de Sá Carneiro

Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh'alma perdida não repousa.


Nada tendo, decido-me a criar:
Segurando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à fôrça de sonhar...


Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo...
- Onde existo que não existo em mim?

. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .

Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d'amor sem bôcas esmagadas -
Tudo outro espasmo que princípio ou fim...
in 'Dispersão' (O livro pode ser encontrado aqui)

- A Mila trouxe Quero um cavalo de várias cores de Reinaldo Ferreira

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?


- O Pedro brindou-nos com um delicioso Boris Vian: Quero uma vida em forma de espinha

Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul

Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho

Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomango

De limpa chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco

Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante

Eu nunca estou contente


- A Paula trouxe O brincador de Álvaro de Magalhães

Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor.
Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for.
Quero brincar de manhã à noite, seja com o que for.
Quando for grande, quero ser um brincador.

Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola
aprender a ser um médico, um engenheiro ou um professor.

Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer.

Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador,
muito mais o que sonhar, como sonha um sonhador,
e também que imaginar, como imagina um imaginador…

A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida.
E depois acrescenta, a suspirar: “é assim a vida”.

Custa tanto a acreditar.
Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não para mim.

Quando for grande, quero ser brincador.
Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta.
Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois de morta.

Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador.
Era um homem simples e dedicado, muito dado,
que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras.»


- O Augusto atirou-se de alma e coração ao Cântico Negro de José Régio (e obrigou outros a um plano B)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


-Em contraponto... para o João Todos os caminhos me servem (de Fernando Namora)

Todos os caminhos me servem.

Em todos serei o ébrio
cabeceando nas esquinas.

Uma rua deserta e o hálito
das pessoas que se escondem,
uma rua deserta e um rafeiro
por companheiro.

Ó mar que me sacode os cabelos
que mulher alguma beijou,

lágrimas que os meus olhos vertem
no suor dos lagares,
que uma onda vos misture
e vos leve a morrer
numa praia ignorada.


- O António trouxe-nos a divinal Divina Comédia de Antero de Quental

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triumfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»


- Da Rita ouvimos Procura
(aguardo que mo envies para o poder transcrever)

- Tomando a deixa da "Lua", a Lena foi pelo caminho da estrelas e leu O primeiro astronauta de Mia Couto (acham que me podem fazer uma contagem decrescente?)

O primeiro astronauta
devia ter sido
Silvestre José Nhamposse

Só ele
teria sacudido os pés
à entrada da Lua

Só ele
teria pedido
com suave delicadeza:

- dá licença?

in Raiz de Orvalho e Outros Poemas, [Lisboa, Editorial Caminho, 1999]


- E a Xana continuou com o mesmo autor (não combinámos... mas fomos ao mesmo livro), com o poema Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

- O Fernando pediu ajuda para o poema de Ana Haterly, Balada do país que doi

Todos (cantando)
O mar enrola n'areia
Ninguém sabe o que ele diz
bate n'areia e desmaia
Porque se sente feliz

O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai
Todos
ooooooooh

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
Todos
ooooooooh

português vai
português sai
português dói

- A Teresa brilhou com Uma certa quantidade de Mário Cesariny

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade

Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião

Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são

Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:

dói aqui
dói acolá

E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar

Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse um adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro

- Num repente também a Alexandra mudou de caminho decidiu-se pelo Limpa palavras de Álvaro Magalhães

Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.

Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.

A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.

Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.

Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.

A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar e
é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.

Basta estenderes a mão
para apanhares a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.

A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.

Todos dizem no fim, em coro

A palavra solidão faz-me companhia.

- O Paulo escolheu Desejos Vãos de Florbela Espanca

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a Árvore tosca e tensa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol, altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...


- A Virgínia trouxe Herberto Helder
(Falta-me o excerto... podes enviar-mo?)


- O Paulo brilhou como um relâpago com Matsuo Bashô

Todos devem escolher uma palavra do aiku e dizê-la IN-TEI-RA-MEN-TE algumas vezes, em decrescendo. O Paulo entra no final

Admiravel aquele cuja vida é um contínuo relâmpago
in O gosto solitário do orvalho, antologia poética, versões de Jorge de Sousa Braga, Lisboa, 1986, Assírio e Alvim, pág. 51


- A Helena trouxe Caminhantes de António Machado (não podia ser mais de acordo com o tema...)

Caminhante, são teus rastos
o caminho, e nada mais;
caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há-de voltar a pisar.

Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.
- E a Cristina fechou (cantando) com Eros e Psique de Fernando Pessoa

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Exercício para 14 de Maio


No meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

1 comentário:

  1. E ainda a proposta da Sylvie (que ainda não teve oportunidade de se juntar a nós) para esta sessão:

    De Antero de Quental, Evolução


    Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
    tronco ou ramo na incógnita floresta...
    Onda, espumei, quebrando-me na aresta
    Do granito, antiquíssimo inimigo...

    Rugi, fera talvez, buscando abrigo
    Na caverna que ensombra urze e giesta;
    Ou, monstro primitivo, ergui a testa
    No limoso paúl, glauco pascigo...

    Hoje sou homem, e na sombra enorme
    Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
    Que desce, em espirais, da imensidade...

    Interrogo o infinito e às vezes choro...
    Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
    E aspiro unicamente à liberdade.

    in "Sonetos"

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